
Não gosto de realeza. Pra mim, considerar uma família especial porque Deus quis e/ou porque seus ancestrais mataram as pessoas certas já sintetiza tudo o que há de errado no mundo: a ideia de que algumas pessoas são especiais por direito de nascença e por isso merecem privilégios.
Felizmente, não vivemos em uma monarquia. As que sobrevivem hoje – califados que não respeitam direitos humanos e ricos europeus sem poder político, uma espécie de Kardashians sem rede social – só reforçam minha convicção que esse tipo de regime não deveria mais existir.
Mas há um detalhe da monarquia que é traiçoeiro, e por isso dá trabalho pra se livrar: o imaginário da realeza. Consideramos fofo tratar adultos e crianças por príncipe/princesa/rei/rainha, esquecendo que quando se trata do gênero feminino, princesas e rainhas, via de regra, são criadas para firmar alianças políticas através do casamento e produzir herdeiros.
Uma rainha/princesa, antes de ser uma soberana, serve essencialmente a esses propósitos. Rainhas que não se casaram e de fato exerceram poder político são exceções na cultura ocidental, e até em parte do oriente. São mulheres cujas condutas foram definidas para dar continuidade a um sistema de privilégios, no qual, na maioria das vezes, a linhagem masculina é favorecida. Basicamente, incubadoras de bebês cobertas de jóias.
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É partindo desse olhar que quero comentar duas séries da Netflix que têm dado o que falar: Rainha Charlotte, o spin-off de Bridgerton, e no docudrama Rainha Cleópatra, inspirado na mais famosa governante do Egito Antigo. Ambas trazem como figura narrativa central mulheres do passado cuja cor de pele é, hoje, objeto de disputa.
Essa não é a mistura do Brasil com o Egito
Há alguns anos participei de um curso sobre gênero na Antiguidade onde a professora lançou a provocação: a quem pertence a herança cultural do Egito? A quem está lá hoje ou aos descendentes da diáspora africana espalhados pelo mundo?
Pra mim, fica evidente que a reação na Internet de avaliar mal uma série e os protestos de egípcios contra uma Cleópatra negra fazem parte de uma visão de mundo racista. Aceita-se que personagens negros sejam interpretados por pessoas brancas, mas não uma mulher negra no papel de governante.
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Sabemos que as pessoas pertencem ao tempo em que vivem, e tudo que fazemos com a memória é uma reinterpretação a partir das lentes pelas quais vemos o mundo hoje. Há outras nuances em jogo, como o fato do conceito de raça e de pertencimento a um continente terem surgido séculos depois da existência da rainha egípcia.
No caso, a apropriação do Egito como algo familiar comum está relacionado ao discurso pan-africanista, transformado num patrimônio comum de um passado grandioso da África. Mas o Egito Antigo teve seu auge como civilização quatro séculos antes da conquista das Américas pelos europeus. Ainda que a escravização de pessoas da nobreza africana seja um fato amplamente registrado, não viemos do Egito. Isso é só o nome de um bloco de carnaval.
Representatividade, fanfic e meritocracia
A série Rainha Charlotte é baseada na vida de Sophie Charlotte de Hanover (1668-1705), que foi casada com o rei George III. Quem já assistiu à série Bridgerton sabe que se trata de uma fantasia histórica que não mente pro espectador. Há música contemporânea na trilha sonora e muitas liberdades criativas, como um elenco de nobres super diverso e uns fatos que nunca aconteceram (a rainha morreu aos 37 anos, mas aparece na trama pleníssima com mais de 60).
Na hora de promover a série de Shonda Rhimes, a Netflix produziu alguns vídeos com discursos que unem representatividade e meritocracia. Lá fora, um vídeo de Alicia Keys tocando com uma orquestra formada por mulheres de diferentes minorias étnicas. No Brasil, a peça estrelada por MC Soffia descreve a protagonista da série como alguém que mudou tudo.
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No vídeo promocional da série, MC Soffia, belíssima caracterizada de rainha, diz que a realeza combina com uma preta. Mas a monarquia britânica não só não combina com mulheres negras. Ela também não combina com qualquer uma que esteja fora dos padrões de feminilidade, e impõe às mulheres a obediência às normas antes de qualquer coisa.
A questão é que a democracia racial que aparece na série nunca existiu. Ela é linda de ver, e não vejo problema em ter atores negros em papéis de uma ficção inspirada em eventos históricos. Mas não podemos perder de vista que se trata de uma fantasia. Se a rainha Sophie Charlotte era negra, dá pra deduzir que nunca foi aceita. Do contrário, não teria sido embranquecida pelos retratos.
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A existência de uma rainha descendente de africanos tampouco facilitou a vida das populações colonizadas pelo império britânico, ou de quem veio depois. Meghan Markle, a outra mulher negra de pele clara a fazer parte da família real, literalmente pediu pra sair.
Rainha Charlotte, assim como Bridgerton, é um ótimo entretenimento, mas tem sido vendida – e aceita – como uma extensão do discurso meritocrático. Sugere “pretos no topo” como se tivesse topo pra todo mundo. Não tem. Por isso, precisamos separar o resgate da memória de mulheres negras históricas do discurso irreal que reforça uma cultura fundamentada na exclusão.
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Se as sociedades capitalistas floresceram transformando a diferença em hierarquia, me parece lógico e evidente que a inclusão de um ou outro subalternizado dentre as elites não irá produzir um mundo mais justo e igualitário. No máximo, uma elite de aparência diversa.
Cor da pele: só mais um marcador social de exclusão
Na apresentação da edição brasileira do livro “Feminismo para os 99%”, Talíria Petrone afirma não haver liberdade possível se a maioria das mulheres não couber nela. Sendo a maior parte das mulheres brasileiras e latino-americanas negras, a realidade geral é de segregação e marginalização. Um feminismo voltado para os 99% deve ser anticapitalista e se esforçar para romper com a lógica colonizadora.
Como afirma Audre Lorde, as ferramentas do senhor jamais derrubarão a casa-grande. Por meio delas, um pequeno número de pessoas de grupos minoritários pode vencer individualmente, desde que jogue conforme as regras do jogo do patriarcado branco, nunca uma mudança autêntica.
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Por isso, de vez em quando é necessário indicar alguns equívocos em nossa bolha acadêmico/militante (arriscando ser impopular), ocasionalmente muito empolgados em relação à representatividade que essas séries trazem. É estando fora dessas estruturas vigentes – neste caso, a busca por representatividade em modelos de exclusão e perpetuação do patriarcado, como a monarquia – que poderemos definir e buscar um mundo em que todas possamos florescer.
Se for pra buscar identificação entre rainhas, que seja com Nzinga, em Angola, e Aqualtune, Tereza de Benguela, no Brasil. Mulheres que lutaram contra os colonialistas e colonizadores pela liberdade dos seus. Mulheres cuja cor da pele não precisa ser reivindicada, conectadas à nossa história, e em quem reconhecemos algo próprio da política de sociedades não-europeias: a liderança sem poder de mando.
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Recusar a realeza e abraçar a agência. É a partir desta chave que formamos laços de solidariedade com quem não aparece no espelho das rainhas glamourosas: indígenas, lésbicas, mulheres mais velhas, trans, trabalhadoras sexuais, neurodivergentes, com deficiência, as consideradas feias, as estéreis, as mães solo, as domésticas, as gordas, as que vivem em situação de rua.
Todas as invisíveis que são muitas para ocupar um trono, que não correspondem ao ideal de feminilidade plasmado nas figuras graciosas das rainhas e princesas, mas que juntas são suficientes para construir outro mundo sobre os escombros deste, que já não nos serve mais.