Você consegue citar rapidamente, sem hesitar, cinco mulheres negras que fazem parte da história do Brasil? Caso demore na resposta ou desconheça a extensa lista, saiba que infelizmente boa parcela dos brasileiros não acessa tais informações, mas elas existiram e seguem existindo. Aqualtune, Antonieta de Barros, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Luíza Mahin… Por que não estudamos essas figuras na escola?
Se para o povo preto ainda é desafiador ser ouvido e legitimado como o sujeito da própria história, mesmo com as conquistas dos Movimentos Negros, a urgência em quebrar o silenciamento é ainda maior para as mulheres negras que buscam ter suas vozes respeitadas e suas produções escritas e publicadas sem o aval do branco.
Neste Dia Internacional da Mulher, convidamos cinco ilustradoras para retratá-las, porque mais do que conhecer suas histórias queremos espalhar suas imagens. Apoie AzMina em março e receba as ilustrações em casa.
Mulheres negras foram agentes importantes no processo de civilização do país, mas testemunhamos um apagamento de suas trajetórias, de acordo com a jornalista, doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Rosane Borges. “O primeiro romance brasileiro, Úrsula, é de uma mulher negra, Maria Firmina dos Reis. Só muito recentemente que esta informação circula para além dos circuitos locais e especializados. Um sem-número de mulheres negras foram e são notáveis em vários domínios da investigação, mas quase sempre ficam relegadas a determinados campos sem prestígio’’, reflete.
O nome disso é epistemicídio, o aniquilamento de formas de conhecimento e culturas, um apagamento coletivo. Um conceito que se tornou amplamente conhecido pelo trabalho da filósofa e ativista Sueli Carneiro, que o tomou de empréstimo do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos.
Quem faz a História?
Quem foram as grandes mulheres negras da nossa história? Quais foram suas trajetórias? A verdade é que ainda há muito a ser estudado sobre isso. E por trás dessa falta, estão algumas questões: começando pela falta de registros oficiais de suas existências e passando também pela forma como a academia se organiza.
Quando falamos dos registros históricos das contribuições negras e indígenas no país, a complexidade é enorme. Especialmente do período que antecede a abolição da escravatura, em 1888, pois muitos documentos oficiais foram destruídos ou mesmo nem existem, visto que parte dessa população à época não era letrada e muitos sequer tiveram a possibilidade de serem retratados em pinturas.
Leia mais: Receba em casa postais com ilustrações das heroínas negras do Brasil
Impossível falar de heroínas negras sem evocar as palavras da intelectual amefricana (termo usado pela pensadora) Lélia González: “Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de ‘limpar o sangue’ como se diz no Brasil) é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura’’, escreveu em 1988 no artigo ‘Por um feminismo Afro-latino-americano’, conceito que liga à ideia de amefricanidade, ou seja, compartilhar uma experiência comum de negritude nas Américas que se desloque do centro dos Estados Unidos.
O próprio espaço acadêmico ainda enfrenta a recusa em abraçar os saberes não hegemônicos: o mais habitual é que pessoas que integram grupos étnicos e racializados apareçam mais como objetos de estudo de especialistas brancos, do que como condutores das suas próprias análises. Mas há os que estão na contramão e optam por acessar o conhecimento de maneira plural e inclusiva, como é o caso de mulheres negras pesquisadoras que se debruçam sobre o pensamento e trajetória de intelectuais negras africanas, brasileiras, latino-americanas e caribenhas.
Thuila Ferreira é uma delas. Internacionalista e mestra em História (UFRGS), é doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA, cocoordena o projeto ‘Biografia de Mulheres Africanas’, da UFRGS, que visa catalogar virtualmente informações sobre a vida do maior número possível de mulheres nascidas no continente africano, de modo a oferecer subsídios de ensino e pesquisa sobre a história das mulheres africanas. “A resistência que existe, e ainda é grande, está sendo quebrada pelos negros e negras brasileiras e africanas que cada vez mais ocupam nossas universidades, mas não é fácil. A cultura eurocêntrica está enraizada neste ambiente que, embora aos poucos venha reconhecendo (ou engolindo!) pesquisas sobre mulheres negras da diáspora, desconhece África quase que completamente, inclusive a contribuição das intelectuais africanas”, avalia.
Leia também: Contar a nossa história é um ato político
Na produção de sua dissertação sobre o pensamento de mulheres africanas, a pesquisadora utilizou quase que exclusivamente material bibliográfico importado e chegou a fazer vaquinha para participar de eventos na Nigéria e na África do Sul para poder ter com quem trocar sobre o que vinha tecendo. Não encontrou ninguém que debatesse a temática no Brasil, ficando em “isolamento acadêmico” durante o mestrado.
“A estrutura, os currículos, o modo de produzir e de passar conhecimento partem de uma premissa eurocentrada que tem dificuldade, por exemplo, em reconhecer a oralidade enquanto fonte e difusora de conhecimento, meio empreendido não só em muitas sociedades africanas pré-coloniais, por exemplo, mas nos quilombos e nos terreiros brasileiros. Entendemos que se nós não considerássemos a história dessas mulheres pela inexistência de fontes escritas, nós estaríamos reproduzindo uma visão excludente, colonialista, e mesmo racista da História, que é justamente uma das coisas que procuramos combater com este projeto”, defende Thuila. Ela enxerga nessas iniciativas de uso da oralidade como material uma abertura rumo à descolonização e à possibilidade de distintas pesquisas a partir de perspectivas que não as tão batidas e enviesadas, que refletem o caráter excludente da sociedade.
Um defeito de cor
Embora seja estabelecida por lei desde 2003 (Lei 10.639/03) a difusão obrigatória da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, isso não é uma realidade em 2021. Para aprender e mergulhar nesse outro lado oculto da história do país, encontramos na literatura uma poderosa ferramenta de preservação da memória coletiva de mulheres negras invisibilizadas que fizeram e continuam fazendo história.
A escritora mineira Ana Maria Gonçalves lançou em 2006 o celebrado e indispensável romance histórico ‘Um defeito de cor’ que apresenta a saga ao longo de oito décadas (em suas quase mil páginas) da protagonista Kehinde, mulher africana capturada e trazida como escravizada para o Brasil. Kehinde em solo tropical ganhou outro nome, mais branco: Luísa Gama, presença forte dentro de duas rebeliões, a Revolta dos Malês (Bahia/1835) e a Sabinada (Bahia/1837), e mãe do importante abolicionista e poeta brasileiro Luíz Gama. Abaixo, contamos mais da personagem real que inspirou o livro.
Leia mais: Mulheres negras hackeiam a política
“Não há documentos históricos sobre a Luísa Mahin. Parti, então, de dois poemas do Luiz Gama, onde ele fala sobre a mãe, como ela era, sua aparência. Parti disto e procurei por documentos que me falassem da vida de centenas de mulheres que pudessem ter vivido nos mesmos lugares e épocas que, possivelmente, a Luísa Mahin. Como sou ficcionista, e não historiadora, o que me interessa é a verossimilhança, a possibilidade do acontecimento em si; e foi apenas com isto que me preocupei. Há personagens históricos, há acontecimentos históricos atravessados pela personagem, mas narrados dentro de um romance; o que, pelo menos para mim, torna tudo ficção”, recorda a escritora, que considera o capital a principal tecnologia de apagamento. “A História sempre foi contada pelos que possuem ou controlam as ferramentas de informação e divulgação, que nunca estiveram nas mãos de mulheres negras”.
Hoje, Dia Internacional da Mulher, te convidamos para celebrar e refletir. Elencamos cinco mulheres que fizeram história: Esperança Garcia, Luíza Mahin, Antonieta de Barros, Maria Firmina dos Reis e Aqualtune. Conversamos com pesquisadores que contaram mais sobre suas trajetórias, confira na lista:
Esperança Garcia
Esperança Garcia foi uma mulher negra escravizada que lutou por seus direitos no século XVIII e foi reconhecida como primeira advogada piauiense somente em 2017. Andreia Marreiro, presidenta do Instituto Esperança Garcia e mestra em direitos humanos pela UnB, conta que Esperança escreveu uma carta endereçada ao governador da capitania de São José do Piauí, em que denunciava as violências a que ela e seu povo estavam submetidos e reivindicava providências. “O documento escrito por Esperança Garcia era, além de carta, uma petição. Myrthes Gomes, hoje, é considerada a primeira advogada brasileira, tendo ingressado nos quadros da advocacia em 1889. Esperança Garcia, no entanto, escreveu sua petição em 1770, o que faz dela uma nova candidata a esse posto: não apenas a primeira mulher, mas a primeira pessoa a exercer a advocacia no País. Um reconhecimento pela OAB Nacional é defendido por juristas e advogadas negras”, relata.
Esperança Garcia vivia com o marido e os filhos na Fazenda Algodões, região próxima a Oeiras, primeira capital do Piauí. Foi lá onde provavelmente aprendeu a ler e escrever com os jesuítas. Após a expulsão dos jesuítas por Marquês de Pombal, e a passagem da fazenda para outros senhores, Esperança foi separada da família para ser cozinheira em uma fazenda comandada pelo capitão Antônio Vieira do Couto.
O acesso à história de Esperança Garcia se deu pelas investigações do historiador e antropólogo Luiz Mott. A carta ao governador, escrita a punho, datada e assinada, foi encontrada pelo pesquisador no arquivo público do Piauí, quando realizava o trabalho de mestrado em 1979. O documento é um dos arquivos mais antigos escritos por pessoas escravizadas de que temos notícia até hoje no Brasil. Não existem informações se Esperança Garcia teve seu pedido aceito pela autoridade competente ou se sofreu represálias por seu ato corajoso de insubmissão.
*Andreia Marreiro é mestra em Direitos Humanos pela UnB. Idealizadora, coordenadora e professora da pós-graduação em Direitos Humanos Esperança Garcia. É também presidenta do Instituto Esperança Garcia e professora de Direito na UESPI. Costuma definir-se como uma “sentipensadora que esperança”.
Luíza Mahin
O nome e presença de Luíza Mahin são associados principalmente como a mãe do importante abolicionista Luiz Gama e também como uma das articuladoras do Levante dos Malês, em 1835 na Bahia. Mahin foi uma africana livre que viveu no Brasil praticando o comércio nas ruas de Salvador, Bahia, como ganhadeira e uma mulher aguerrida que possivelmente teria se envolvido com levantes na década de 1830 também em Salvador. Há relatos de que ‘seria do santo’ (ligada a religiões de matriz africana), outros sugerem que seria muçulmana. “Isso é o que se perpetuou na memória popular, gosto sempre de começar por aí porque foi também meu ponto de partida para pesquisa, estudei Luíza Mahin no mestrado e investiguei o processo de mitificação dessa figura”, conta Dulci Lima doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC.
A pesquisadora analisou a carta de Luiz Gama, o primeiro registro que se tem da Luíza, entre outros documentos como o romance do Pedro Calmon, escritos de Arthur Ramos, poesias e verbetes produzidos por feministas negras nos anos 1980, uma radionovela dos anos 2000 e o romance da Ana Maria Gonçalves ‘Um defeito de Cor’. “Minha perspectiva é de que Luíza Mahin é uma figura mítica, produto de um conjunto de narrativas que se desenvolve a partir da carta do Luiz Gama, onde ele descreve muito brevemente quem teria sido sua mãe e outros elementos vão sendo incorporados à essa narrativa inicial por outros autores’’ analisa Dulci.
É possível ainda encontrar seu nome em ruas, escolas e praças. “Hoje ninguém questiona a veracidade da existência da Luíza Mahin. Penso que ela fala muito da força narrativa das feministas negras que elevaram a figura dela a ponto dela se tornar heroína do Brasil”.
*Dulci Lima, Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, mestra em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie, bacharel em História pela USP.
Antonieta de Barros
Antonieta de Barros está entre as três primeiras mulheres eleitas no Brasil, a única negra. Foi eleita em 1934 deputada estadual por Santa Catarina e desde a sua vitória nenhuma outra deputada negra se elegeu por lá. Outro dado histórico quando falamos em seu nome é que Antonieta foi a parlamentar responsável pela criação do Dia do Professor. “Antonieta foi eleita menos de meio século após a abolição da escravatura e apenas dois do sufrágio —que deu às mulheres direito ao voto facultativo. Num país fortemente preconceituoso quanto à classe, cor e gênero, ela tinha orgulho de sua história. Nasceu em Desterro, como era chamada Florianópolis, no dia 11 de julho de 1901, filha de Catarina Waltrich, mulher escravizada liberta, mãe solo”, conta a jornalista Aline Torres.
Antonieta acreditava que a educação era a única arma capaz de libertar os desfavorecidos da servidão. Tinha 17 anos quando fundou o curso particular “Antonieta de Barros”, com o objetivo de combater o analfabetismo de adultos carentes, e sua fama de excelente profissional fez com que lecionasse também para a elite. Além de professora, virou cronista e em 23 anos de contribuição à imprensa escreveu mais de mil artigos em oito veículos e ainda criou a revista ‘Vida Ilhoa’. Em 1937, publicou o livro ‘Farrapos de Ideias’ e todos os lucros da primeira edição foram doados para construção de uma escola para abrigar crianças, filhas de pais internados no leprosário Colônia Santa Tereza.
“A primeira grande lei educacional do Brasil foi sancionada por Dom Pedro I em 15 de outubro em 1827, um marco para a educação brasileira. A data era comemorada informalmente, mas foi um projeto de Antonieta a lei que criou o Dia do Professor e o feriado escolar nessa data em Santa Catarina. Outras leis importantes foram concessões de bolsas de cursos superiores para alunos carentes e concursos para o magistério, para elevar o ensino público e evitar apadrinhamentos’’, relembra a jornalista que diante da história de Antonieta observa que uma das poucas frustrações de sua carreira foi não ter cursado o ensino superior -seu sonho era a Faculdade de Direito que era na época exclusiva para homens.
*Aline Torres, jornalista e diretora de projetos da Construtores de Memórias, agência de narrativas especializada em transformar histórias afetivas em biografias, reportagens e documentários.
Maria Firmina dos Reis
Maria Firmina dos Reis é a primeira mulher negra a publicar um romance, “Úrsula’’ em 1859, em toda a lusofonia (países que têm o português como língua oficial ou dominante) e em toda a América Latina. É uma grande precursora da literatura negra ocidental que surge apenas a partir da década de 1920. Segundo Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a obra é explicitamente política. “Feminista, antipatriarcal e antiescravista. Pela primeira vez, a África surge na literatura brasileira, e pela primeira vez o tráfico e, sobretudo, o porão do navio negreiro é descrito em detalhes e construído como espaço de sofrimento e morte, daí o nome “tumbeiro”, derivado de “tumba”. Firmina nunca se casou, e após se aposentar, criou a primeira escola mista do Maranhão e uma das primeiras do Brasil”, aponta.
Firmina nasceu em 1822, ano da Independência do Brasil, em São Luís do Maranhão. Durante seus 95 anos de vida, a escritora abolicionista escreveu ainda ‘Gupeva’ (ficção, 1861), ‘Cantos à beira-mar’(poemas, 1871), vários textos jornalísticos e um ‘Álbum’ com escritos memorialísticos.
Oprimida pelo patriarcado racista, Firmina não assinava seu nome nos livros, escrevia apenas “Uma maranhense”. Segundo o pesquisador, ela é vítima de memoricídio justamente por colocar o dedo na ferida racial brasileira. “E o faz a partir da Bíblia se apropriando do discurso cristão que, na prática, referendava o sistema. Ainda polemiza com o filósofo alemão Hegel e com todo o pensamento eurocêntrico para o qual África e Brasil eram desprovidos de civilização, e critica abertamente o patriarcado por oprimir o negro e a mulher, mesmo branca’’, explica.
Resultado: Úrsula passou praticamente “em branco” por todo o século XX, só vindo a ter leitores, sobretudo jovens, a partir da edição de 2004. Firmina faleceu pobre e cega na cidade de Guimarães, no Maranhão.
*Eduardo de Assis Duarte, professor do Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários e Coordenador do Portal literafro, da UFMG.
Aqualtune
“Sobre ela ser ou não real, eu acho muito válido enfatizar que o apagamento da história do povo preto existe e isso não é de agora. No entanto, felizmente os historiadores resgatam os acontecimentos e a gente consegue absorver”, afirma a professora Taynara Silva. De linhagem real, Aqualtune é uma personagem semi-lendária da história do Quilombo dos Palmares. Princesa africana e forte liderança, nasceu no Reino do Congo e liderou dez mil homens e mulheres contra Portugal, na Batalha de Mbwuila em 1665, que resultou na sua captura e vinda para o Brasil. Aqui, foi vendida no Recife como uma escravizada de reprodução. Grávida, ela consegue fugir e se estabelece na região da Serra da Barriga, até então Pernambuco e que hoje pertence ao município de União dos Palmares, Alagoas, participando ativamente do grupo que formou o memorável Quilombo dos Palmares.
Aqualtune deu à luz Sabina, mãe do grande líder Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba e Gana, que tempos depois seriam chefes dos mais importantes mocambos de Palmares. “Não se sabe ao certo se ela morreu numa das invasões do Quilombo dos Palmares ou se foi por alguma doença, o fato é que ela continuou lutando até o fim. Me dá muita força saber que a luta continua e que temos sim nomes de feministas negras muito anos antes do feminismo surgir”, celebra Taynara.
Sua memória é preservada nas tradições orais e inspirou o tema do enredo da escola de samba Mangueira no Carnaval de 2019.
*Taynara Silva, alagoana, professora de Língua Portuguesa, pesquisa formas de efetivação da pedagogia antirracista.