logo AzMina

Mulheres negras e indígenas resistem à violência política no estado mais branco do Brasil

Com 81,5% de pessoas autodeclaradas brancas, Santa Catarina teve sua primeira e única deputada estadual negra em 1934

Nós fazemos parte do Trust Project

Atenção: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e racista. Optamos por não censurá-los, porque achamos importante exemplificar como o debate é violento na internet, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, como podemos identificá-la e quais termos são frequentemente direcionados às candidatas ofendidas.

Em 1934, Santa Catarina elegeu a primeira mulher negra para o legislativo brasileiro, a professora Antonieta de Barros. Desde então, o estado mais branco do Brasil – 81,5% das(os) catarinenses se autodeclararam brancas(os) na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2021 – não elegeu  outra representante negra para a Assembleia Legislativa catarinense (Alesc). Atualmente, a Alesc possui a maior bancada feminina da sua história, um recorde alcançado com cinco mulheres, que representam apenas 12,5% dos parlamentares.

Uma das chaves para entender a falta de diversidade nesses espaços de poder é a violência política, que opera de diferentes maneiras para  impedir o exercício de direitos políticos e eleitorais. Nestas eleições, o Portal Catarinas entrevistou quatorze candidatas a deputada estadual e federal através de um formulário direcionado a candidaturas feministas, antirracistas e LGBTinclusivas. 92,9% delas afirmaram ter sofrido ou estar sofrendo violência política nas eleições, enquanto 21,4% responderam ter sido alvo de violência política pela sua raça. Do total de entrevistadas, cinco (34,7%) são pretas, pardas e/ou indígenas.

Na atual legislatura, o único representante negro entre os 40 membros da Casa, na verdade, se reconhece como branco, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).  Segundo declarações públicas do seu gabinete, houve um erro ao registrar Julio Garcia (PSD) como pardo. Entre a população catarinense, 18,1% são de pessoas pretas e pardas.

Uma das candidaturas que se destacam no cenário estadual é a de Bia Vargas (PSB), única negra a concorrer em chapa majoritária, disputando a cadeira de vice-governadora pela Frente Democrática. “Mulher negra, mãe solo, vítima de violência doméstica, microempreendedora. A coligação procurava um perfil como o meu, que agregasse um público que nunca foi representado”, explica.

Em entrevista ao Catarinas, Vargas revela que foi silenciada no próprio partido. “A minha escolha foi atravessada por muita violência, uma tentativa muito forçada de não ser escolhida, houve muita resistência, sem fundamento algum”, declarou. A coligação Vamos Juntos por Santa Catarina decidiu pelo nome da candidata, enquanto seu partido havia indicado outros dois possíveis vices. 

Na última semana, o candidato ao governo de Santa Catarina, Décio Lima (PT), compartilhou nas redes um áudio onde um blogueiro o critica por ressaltar que sua vice, Bia Vargas, é negra. O blogueiro o acusa de cometer racismo contra pessoas brancas ao destacar a importância de ter uma mulher negra como vice.

Para a candidata a vice-governadora, o áudio demonstra um incômodo muito grande e a dificuldade da população em assumir que é racista e falar sobre o tema. “Acredito que precisamos repudiar e fazer um constrangimento público do agressor. Estamos nessa fase de constranger quem viola e, em contrapartida, oferecer informação”, propõe a candidata. 

Uma das lutas travadas por Vargas é a cobrança da aplicação da Lei Federal n.º 10639/2003, que obriga o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em toda a educação básica, mas ainda não é cumprida. Esta candidatura é a única entre as majoritárias catarinenses a assumir um compromisso público de combater o racismo e ampliar a diversidade no governo. 

Mais de 90% das candidatas de SC sofreram violência política na campanha de 2022

Vanda Pinedo (PT), da candidatura estadual coletiva Nossa Força, Nossa Voz com outras duas mulheres negras, entende que, quando uma mulher, negra, LGBTQIA+, periférica se destaca, quem tradicionalmente ocupa os espaços de poder se incomoda. 

“Eles querem mulheres que não apaguem as referências machistas e eurocêntricas que a política tem tido historicamente no Brasil. Aquelas que apagam essa presença machista e eurocêntrica não são estimuladas a estarem nesse lugar, porque elas vão mudar o status quo. Nossa visibilidade, nossa participação política e social, incomoda a estrutura da sociedade”, argumenta Pinedo. 

A população majoritariamente branca do estado parece ignorar a existência de outras identidades, especialmente se o assunto é atuação política institucional. Quando uma mulher ousa ocupar um espaço que tradicionalmente não é atribuído a ela, como a política, a hostilidade aumenta. Se essa mulher é negra, a violência é ainda maior. O quadro segue se agravando ao tratarmos de outros grupos minorizados, como a população indígena, LGTBQIA+, pessoas periféricas e com deficiência, por exemplo. 

“Percebemos que no Rio de Janeiro, por exemplo, elas estão brigando pela maior participação da mulher negra na política. Aqui a gente ainda está discutindo a participação da mulher. Para chegar a vez da mulher negra, vai demorar muito ainda. Estamos tentando dar um passo gigantesco com minha candidatura à vice-governadora, mas a gente sabe que em um pensamento lógico, racional e cronológico, ainda estamos muito atrás”, afirma Vargas.

Em relação à população indígena, o estado não tem representação nos parlamentos estaduais e nacional. A informação mais recente sobre a população originária em SC é do Censo de 2010, com 0,3% da população total, pouco mais de 16 mil pessoas. Nestas eleições, somente quatro mulheres indígenas concorrem ao pleito. A única indígena disputando uma vaga na Câmara Federal é Eunice Antunes Kerexu (PSOL-SC), ativista pela educação indígena.

Pela primeira vez na história do país, uma bancada Indígena, com 30 candidaturas de todas as regiões e de 31 povos, disputa as eleições de forma coordenada sob a campanha “Aldear a Política”, apoiada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

Kerexu, da etnia Mbya Guarani, teve a candidatura anunciada ao lado de outras duas lideranças indígenas femininas no Brasil: Sônia Guajajara (PSOL-SP) e Célia Xakriaba (PSOL-MG). Ela afirma ter sofrido diferentes violências políticas, como se fosse incapaz de ocupar certos espaços por ser uma mulher indígena. Ainda assim, esta é a segunda eleição a que concorre. “Foi a falta de justiça para o meu povo que me levou a querer assumir esse lugar na política partidária, para dar visibilidade na luta pelo território e proteção dos territórios”, ressalta. Moradora da Terra Indígena Morro dos Cavalos, região metropolitana de Florianópolis, a candidata entrou para o jogo eleitoral em 2018, após sofrer diversos ataques por lutar pela demarcação do seu território. 

Partidos atrasam repasse de verbas prioritárias para mulheres e população negra

Dados nacionais compilados no 72horas.org – coletados na base de dados do TSE – mostram que até 11/09/2022 os partidos haviam repassado 70,60% de verbas a candidatos homens, e 60,38% a candidaturas brancas. As candidaturas de pessoas pardas receberam 26,40% dos repasses, às pessoas pretas foram destinados 8%, enquanto as indígenas representam 0,62% do repasse. 

Essa distribuição inadequada dos fundos patrimoniais dos partidos é considerada violência política institucional pelo IMF.

“A gente trabalha com essa categoria de violência política institucional por entender não só a questão do recurso não chegar, mas a maneira como se opera essa desigualdade no acesso aos recursos, que se dá principalmente a partir de decisões de operadores políticos e dirigentes partidários que não levam em conta questões de equidade”, acrescenta Fabiana Pinto, coordenadora de incidência e pesquisa no Instituto Marielle Franco.

Este tipo de violência política é um dos mais citados nas entrevistas realizadas pelo Catarinas. A candidata a deputada federal por SC, mulher transgênero, preta e bissexual, Lirous K’yo Fonseca Ávila (PT), reclama que a linha de largada para as candidaturas não é a mesma. “Tem uma diferença muito grande entre as pessoas que já foram eleitas, e tem dinheiro, para os demais candidatos. Minha campanha, por falta de financiamento, iniciou depois dos demais, que já haviam contratado suas equipes”, lamenta a assistente social.    

Ativista dos direitos da população LGBTQIA+, Lirous Ávila, não questiona as diferenças de valores entre candidatas(os), que pode ser alta, mas pede um início de campanha justo com todas as pessoas. “Os respectivos valores devem cair na conta no mesmo dia. É injusto você ver, no primeiro dia de campanha, as pessoas cheias de material e bandeiras nas sinaleiras”, reprova. 

A professora aposentada pela Rede Estadual de Educação de SC e candidata estadual à Alesc, Vanda Pinedo (PT), defende que a liberação das verbas para mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas negras e juventude tenha  prioridade.  “O formato eleitoral para uma mulher negra comum da classe popular não pode ser o mesmo que está colocado. Devíamos ter recebido a verba assim que saiu a nossa candidatura. Só recebemos a parte mais grossa da verba a dezenove dias das eleições. Isso é muito perverso e desigual”, constata a militante do MNU. 

Pela sua representatividade no estado, a candidata a deputada  federal Kerexu (PSOL) foi priorizada por acordos internos realizados no seu partido. No entanto, por ser indígena, não possui nenhuma regulamentação específica e recebeu repasses do TSE a partir da prioridade recém-adquirida para candidaturas de mulheres negras. 

“O valor recebido este ano foi muito superior comparado ao que recebemos em 2018, que foi um repasse de apenas R$10 mil reais. Mas, infelizmente, o montante recebido ainda é limitado para uma candidatura como deputada federal – ainda que proporcional à distribuição interna do partido”, comenta a candidata. Até o momento, a candidatura recebeu quase R$68 mil, segundo o TSE. 

Quase 80% das candidatas sofreram violência política pela internet

Entre as respostas dos questionários que realizamos, as candidatas descrevem mensagens com ameaças de morte, fotos de armas, assédio variado, questionamentos sobre ser mulher na política, ataques por ser negra e por ser pobre. Além disso, 14,3% responderam ter sofrido violência política pela sua orientação sexual, identidade de gênero, religião e por ser de esquerda. 7,1% responderam sofrer violência pela sua idade e por ser de outra região.  

Carla Ayres (PT) foi a primeira vereadora lésbica a assumir um mandato em Florianópolis, em 2020. Atualmente, disputa uma cadeira na Câmara Federal. A maior parte das violências que recebe são ameaças e ofensas nas redes sociais. “Acredito que por ter uma forte atuação nesse espaço”, analisa. Seu perfil no Twitter é um dos duzentos acompanhados pela MonitorA, observatório de violência política online realizado pela AzMina em parceria com o InternetLab e o Núcleo Jornalismo

“As ameaças são sempre denunciadas às autoridades competentes e as ofensas são denunciadas às plataformas. Geralmente, incluem relação com a minha orientação sexual (lésbica), ao meu partido, ao fato de eu ser mulher e as pautas que defendo”, comenta a cientista política e social, Carla Ayres. 

Essa situação acaba interferindo na forma como as candidaturas se colocam na arena pública das redes sociais. A vereadora, que costuma debater temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, à descriminalização da maconha e aos direitos das populações LGBTQIA+, diz ter um cuidado redobrado para abordar pautas que considera necessárias. “As ameaças e a radicalização do discurso de ódio contra candidaturas de esquerda nos forçaram a contratar segurança em alguns momentos da campanha”, confessa. 

Os dados levantados pelo MonitorA em 2020 e 2022 mostram que a violência política afeta mulheres de todos os espectros políticos, tanto em volume quanto na intensidade dos ataques. As motivações e temas mudam, mas nenhuma candidata ou eleita pode se considerar segura nesse campo.

Leia mais: Como a violência política de gênero acontece na prática

A cientista política e doutora em História pela Unicamp, Flávia Biroli, concorda que a violência política de gênero não é específica de um segmento partidário ou ideológico, mas entende que ela se manifesta de maneira interseccional.  “Quando olhamos para os dados de violência política de gênero nas eleições municipais de 2020, fica evidente que a violência se manifestou numa perspectiva racista e LBTQfóbica, transfóbica em particular”, analisa.  Outro aspecto que Biroli destaca, é a convergência dos ataques a mulheres ativistas, feministas, antirracistas, defensoras de direitos humanos. “Com a extrema-direita avança uma política de ódio, que elege sistematicamente mulheres ativistas e feministas, porque essa política define o nós, uma coletividade política aceitável, vista como legítima de uma maneira muito restrita, antipluralista e anti-igualitária. E essas ativistas colocam em xeque esse sentido de uma coletividade homogênea”, explica. 

A candidata Lirous Ávila (PT) recebe inúmeros ataques pelas redes, principalmente de  perfis falsos. No caso dela, o principal alvo de ataque é sua identidade de gênero. Além de estarem em um pleito eleitoral, com todas as dificuldades que isso implica, algumas candidatas têm a sobrecarga de apagar e denunciar comentários ofensivos, manter a sua segurança e cuidar da sua saúde mental.  

Mandatos coletivos são alternativa para grupos minorizados unirem forças

Os mandatos coletivos são uma estratégia inovadora para a garantia do acesso à disputa eleitoral por grupos historicamente excluídos desses processos e espaços. Os primeiros mandatos compartilhados surgiram na década de 1990, mas ganharam força em 2018 e 2020, com 341 candidaturas e 28 vitórias. 

“Quando a gente coletiviza, trazemos mais pessoas junto com a gente, mais pessoas para pensar, para construir, para caminhar, para esperançar, construir amor, afeto e conquistas. Estamos trazendo tudo isso, não é tão somente construir pauta, é também de construir desejos, de falar da vida, de construir esperanças”, defende Vanda Pinedo, que compõe a candidatura coletiva Nossa Força, Nossa Voz.

Pinedo destaca, historicamente, esses modelos de mandatos compartilhados fazem parte da cultura dos negros escravizados:

“As mulheres negras, quando promoviam as lutas, insurgências, arrecadações, vendas, para tirar do sofrimento aqueles que ainda permaneciam escravizados, faziam um trabalho coletivo. Não era uma fazendo por uma. Eram muitas que faziam por muitas. Elas coletivizavam o trabalho e a renda. A luta pela liberdade das mulheres negras passa por uma luta de resistência coletiva. Ela não é uma resistência isolada”. 

Ela recebe apoio do projeto Estamos Prontas, parceria do Instituto Marielle Franco com o Mulheres Negras Decidem, que impulsiona uma candidata a deputada estadual em cada estado e no Distrito Federal. “Adotamos algumas estratégias, principalmente de formação de quadros, de desenvolvimento de habilidades específicas das candidatas e de incidência nos partidos políticos específicos, do qual elas fazem parte para garantir as candidatas no processo eleitoral”, explica Fabiana Pinto. 

No Sul do país, há dois anos, o primeiro mandato coletivo chegou à  Câmara Municipal de Florianópolis. Uma das co-vereadoras da Coletiva Bem Viver, Cíntia Moura Mendonça (PSOL-SC), agora disputa o cargo a deputada estadual pelo coletivo Mandata Feminista do Bem Viver. São nove mulheres – entre indígenas, trans, negras, imigrantes, periféricas – que vivem em diferentes localidades de Santa Catarina. 

Mesmo acompanhada de nove mulheres, Mendonça relata ter recebido menos verba do que previa. “O CPF (registro eleitoral) foi o meu justamente por entender que, pelo fato de ser a única parlamentar mulher do PSOL em SC, como porta-voz da Coletiva Bem Viver, enfrento todos os dias violência política de gênero nos ambientes institucionais. Me senti muito prejudicada e desvalorizada, apesar de alegarem ser a candidatura prioritária do partido entre as mulheres como deputada estadual”, afirma. 

A legislação eleitoral brasileira permite apenas uma pessoa eleita para cada cargo, que deve ter filiação partidária para concorrer nas eleições. Este ano, o TSE permitiu que a denominação dos mandatos compartilhados apareça na urna eletrônica ao lado do nome da pessoa registrada. Porém, isso não regulamenta o mandato. 

Fabiana Pinto, do IMF, defende a regulamentação urgente dos mandatos coletivos. “Quando a gente está falando de violência política e mecanismos de proteção, significa que essa pessoa, que é a co-vereadora e não é a detentora do mandato, tem acesso restrito a uma série de benefícios e direitos importantes em contextos adversos, seja por violência política ou em um aspecto de garantia de direitos como parlamentar”, declara.

O MonitorA é um observatório de violência política online contra candidatas(os) a cargos eletivos. O projeto é uma parceria entre a AzMina, o InternetLab e o Núcleo Jornalismo. A iniciativa é financiada por  Luminate e Reset.

O MonitorA conta ainda com a parceria de veículos regionais que produzem reportagens sobre violência política com o recorte de seus territórios. Esta matéria, sobre o cenário da região Sul, é do Portal Catarinas. Participam do MonitorA ainda Agência Tatu (AL), data_labe (RJ), A Lente (MT) e Abaré Jornalismo (AM)

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE