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2 de julho de 2024

Permita que eu fale. Não só no Julho das Pretas

Você sabia que mulheres negras podem falar sobre outras coisas além de suas vivências, e que  existimos nos outros meses do ano?

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mulher pula a partir de mãos negras que a protegem, um salto para ganhar o mundo

Um veículo de imprensa estrangeiro me procurou para participar de um debate, em 2018, logo após aquele pesadelo que foi a eleição presidencial. No estúdio estariam presentes um deputado recém-eleito, um cientista político e “uma mulher negra” (genérica) para falar da forma que  isso nos afetaria como grupo. O convite não era pra ser a especialista, embora eu tenha doutorado nessa área. Era para falar como “mulher negra”. 

Minha tese aborda como o terrorismo se tornou um problema para a política internacional ao longo do século 20. Pesquisei e escrevi sobre como a elaboração de leis para combater o terror sempre iria atingir pessoas inocentes e ampliar os mecanismos de vigilância e repressão. Entretanto, pouquíssimas vezes algum veículo de imprensa me considerou tão interessante para comentar esse tema quanto para falar de gênero e raça.

Em 2018, eu já era feminista, mas ainda não tinha formação sobre estudos de gênero. Tinha letramento racial o suficiente pra entender que como parda (afro indígena), eu sou negra. Mas sabia também que ter a pele clara e ter crescido numa família de classe média, com acesso ao ensino superior e à pós-graduação em boas universidades, fazia a minha experiência bem distinta da maioria das mulheres negras brasileiras, de modo que não me sentia à vontade para falar por todas.  

Respondi ao produtor do programa que poderia participar, mas como cientista política. Eles disseram que iam ver e qualquer coisa me retornariam. No fim, na hora de fazer análise conjuntural, eles foram de homem branco cisgênero, como é o costume. 

Produzimos conhecimento em todas as áreas

Compartilho essa história porque ela é recorrente na minha vida e na de outros intelectuais negros e negras com quem já troquei desabafos semelhantes. Já existe um pequeno esforço de procurar acadêmicos que são parte de minorias para falar sobre outras questões pertinentes a nós negros, indígenas, asiáticos, quilombolas, pessoas LGBTQIAPN+, PCDs… Mas ainda é raro lembrarem que a gente existe fora do mês do orgulho, da consciência negra, do julho das pretas ou da visibilidade trans. 

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Parece que tudo o que temos a oferecer – até mesmo para meios de comunicação progressistas – são curiosidades e relatos de dor. Embora estejamos produzindo conhecimentos em todas as áreas, parece que não temos histórias a contar que não as de tristeza ou de superação. Cansa, nem sempre a gente tá a fim  ou não é a nossa experiência de vida.

Essa inclusive é a história do filme “Ficção Americana”, candidato ao Oscar de melhor filme de 2024. Na trama um intelectual negro estudioso de Filosofia decide escrever um livro de ficção com todos os clichês raciais envolvendo pobreza, violência e a vida no gueto – só pela zoeiera. O livro acaba sendo um enorme sucesso comercial, gerando vários debates interessantes sobre o que é importante retratar e sobre o que o público consumidor (branco) quer ler.

Há espaço para amar e sonhar

Quantas obras do cinema, televisão e literatura que temos escritas e protagonizadas por pessoas pretas que não sejam sobre o sofrimento negro? Óbvio que livros como “Quarto de Despejo”, “Um defeito de cor” ou “O Avesso da Pele” são importantíssimos pelo que retratam e pelo seu valor como produtos literários. 

Filmes como “Cidade de Deus”, “Medida Provisória” ou “M-8 – Quando a morte socorre a vida” são produtos audiovisuais de alta qualidade e muito importantes para expor como opera o racismo. São histórias que precisam ser contadas, mas não as únicas. Eu também quero ver mais histórias como Marte Um, que não mostra uma vida cor de rosa, mas ainda assim há espaço para o amor e para os sonhos.

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Resumo meu sentimento sobre isso com o refrão da canção “AmarElo”, de Emicida, cantado por Pabllo Vittar e Majur: “permita que eu fale, não as minhas cicatrizes”. Nos resumir à sobrevivência, achar que essas mazelas nos definem é dar o troféu pro nosso algoz e nos fazer sumir.  

Identitário é o homem branco cisgênero

Dentro da universidade e de espaços de produção de conhecimento, a lógica tende a se inverter. Mulheres, pessoas trans e intelectuais negros e/ou pertencentes a grupos minitoritários que estão pesquisando e produzindo conteúdo sobre outros temas são pressionados a esquecer suas identidades em nome de uma análise “neutra”. 

A ideia de que tudo que diz respeito a raça e gênero é “identitário” parece não se lembrar que a maior identidade de todas é a do homem branco hétero cis. Como se, os que hoje são chamados de identitários, tivessem se marginalizado sozinhos e não por um sistema que eles não criaram. Reduzem tudo à luta de classes como se a tal classe não tivesse gênero, raça e orientação sexual. 

No meio anarquista, que é de onde eu venho, você é rechaçado se não se ativar ao pensamento de autores europeus do século 19. No máximo, pode fazer referência à Emma Goldman e Lucy Parsons, mulheres anarquistas que eu pessoalmente admiro muito, mas cujo pensamento não contempla temáticas do mundo em que vivemos hoje. 

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Então, eu e outras pesquisadoras, como a Luísa Amaral, dialogamos com Judith Butler, Paul B. Preciado, Michel Foucault, Françoise Vergès e por causa disso somos chamadas de “pós-modernas”. Essa palavra, assim como identitário, é um guarda-chuva linguístico que tem servido pra desqualificar tudo que os meios majoritariamente brancos e cis não gostam.

Acontece que se você é uma mulher negra, cis ou trans, a sua visão de mundo vai ser atravessada por essa vivência, independentemente do purismo canônico. Não somos só nossas identidades, mas não existimos fora delas, porque foi o mundo que nos colocou nessas caixas. Do mesmo modo, ser uma mulher da Amazônia vivendo em São Paulo me atravessa o tempo todo, independente do que eu for falar.

Algumas dão close errado, e daí?

A experiência política recente do Brasil já nos deu vários exemplos de que nem toda mulher está comprometida com causas feministas e nem toda pessoa negra com a luta antirracista. Apesar disso, várias pessoas supostamente aliadas continuam agindo com espanto ao se deparar com uma mulher que defende o patriarcado ou pessoa negra que diz nunca ter sofrido preconceito. 

Se a gente parar para pensar, dizer que mulheres machistas são piores que os homens, ou que é um absurdo uma pessoa negra se aliar a um racista, passa uma ideia de que tá tudo bem homens serem machistas e brancos serem racistas.

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Haja didática e paciência pra explicar que mulheres e pessoas negras não estão a salvo nessa estrutura. A postura dessas pessoas não é pior que a de todos os outros que fazem coro com as opressões. Preciso ter sororidade com quem me jogaria na fogueira na primeira oportunidade? Não. Precisa cobrar com mais intensidade quem dá close errado do que quem tem poder real para mudar as coisas? Tampouco. 

Sempre vai ter algum machista pra dizer que tem uma amiga que não acha nada de mais fazer piada misógina ou uma amiga negra contrária, ou sistema de cotas e que não acha que a sua atitude foi racista. Mas do mesmo modo que uma pessoa branca não é cobrada a falar por todos os brancos, a gente tem que parar de achar que pessoas negras são um bloco homogêneo. Somos diversas. 

Eu não quero que minha opinião seja validada pela minha experiência de vida, quero ser validada porque eu estudo pra caramba. Queremos ser lembradas durante o ano todo e pra falar sobre qualquer área de conhecimento em que estamos inseridas. Permitam que a gente fale. Não só no Julho das Pretas.  

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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