logo AzMina
6 de novembro de 2023

Israel-Hamas: a batalha entre o patriarcado e o colonialismo

Esta não é uma análise geopolítica, mas um manifesto feminista que diz: em nosso nome, não

Nós fazemos parte do Trust Project

Conflito Israel Hamas
Arte: Kath Xapi.

Das epopeias gregas ao cinema hollywoodiano, do registro histórico às sagas fantásticas como “O Senhor dos Anéis” e “Game of Thrones”: a narrativa predominante da guerra é a da jornada heroica. “Homens corajosos e honrados enfrentam a morte para defender suas mulheres, crianças e a pátria”. Um discurso que funciona pela desumanização do adversário e naturaliza o patriarcado. 

Atire a primeira pedra a feminista que nunca ouviu “os verdadeiros oprimidos são os homens, porque são eles que vão para a guerra”. Não surpreende, portanto, que a polarização em torno do conflito Israel-Hamas reproduza essa retórica conveniente a uma direita armamentista, carregada de islamofobia e fundamentalismo judaico-cristão. 

Sob esta ótica, Israel seria uma “ilha de democracia e igualdade de gênero” no Oriente Médio, com mulheres aptas a usar armas e se defender. Já nos países vizinhos, elas seriam “privadas de qualquer autonomia, obrigadas a viver sob os códigos de fanáticos, que não hesitam em “usar suas mulheres e crianças como escudo”. 

E dentro dessa narrativa, ser contra a guerra equivaleria a ser a favor da barbárie. Pior, contra as mulheres. Mas quando olhamos a situação com cuidado, vemos aquilo que é comum a todas as guerras: as principais vítimas são as mulheres e crianças – que homens de ambos os lados alegam estar tentando proteger. 

A guerra algumas vezes tem rosto de mulher

A igualdade de gênero em Israel está expressa formalmente em sua declaração de independência (1948). Durante o conflito mais dramático de sua História até agora – a Guerra do Yom Kippur – o país foi comandado por uma mulher, a primeira-ministra Golda Meir. Lá o serviço militar é obrigatório independentemente do gênero. Mulheres participam diretamente das atividades militares cotidianas e dos combates. 

Leia mais: quem são as mulheres loucas?

 O treinamento militar, porém, não impede que as israelenses sejam vítimas de violência sexual ou doméstica, tal qual as moradoras dos demais países do Oriente Médio. Nem o muro que separa o país da Palestina impediu que mulheres – idosas inclusive – fossem levadas como reféns pelo Hamas. 

Há denúncias de mulheres do exército israelense que trabalhavam em prisões e foram estupradas por presos com o consentimento de seus superiores. Casos como o de Shira Isakov, que sofreu uma tentativa de feminicídio, se tornaram emblemáticos por exporem a luta de vítimas contra um sistema de leis que favorece agressores e abusadores.

Em agosto deste ano (2023), mulheres israelenses protestaram contra a segregação de gênero no transporte público, por preceitos religiosos ultraortodoxos, que limitam ou vedam a convivência com homens nos mesmos espaços. Conforme as manifestantes, mulheres e meninas estariam sendo obrigadas a sentar na parte traseira dos ônibus ou impedidas de embarcar. 

Leia mais: mulheres migrantes em conflito com a lei

Existem ainda formas simbólicas de exclusão das mulheres do espaço público, como as hostilidades praticadas por esses religiosos ultraconservadores – base de apoio ao governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Elas incluem destruição de  imagens de mulheres sobreviventes do Holocausto no espaço público e agressões contra mulheres que vão orar no Muro das Lamentações – um dos monumentos mais importantes da fé judaica. Estando ou não em guerra, nem do lado “mais forte” as mulheres estão em paz. 

Descolonizar o feminismo

A cientista política francesa Françoise Vergès critica o feminismo ocidental capitalista por sua obsessão pela vitimização das mulheres racializadas, propondo “salvar” mulheres racializadas do “obscurantismo”. Essa abordagem é recorrente em relação às palestinas, sempre retratadas em contraposição à imagem projetada por Israel – o “oásis do Oriente Médio.”

A autora propõe analisar a questão das mulheres racializadas e de países periféricos por uma perspectiva decolonial. Nessa mirada, os problemas relacionados ao gênero, como estupros, feminicídios e violência doméstica, não se dissociam das lutas contra o extrativismo, a colonização e a destruição sistemática da vida. 

A participação de mulheres no nacionalismo palestino é registrada desde antes da fundação de Israel, quando a região ainda estava sob protetorado britânico. O ativismo incluía organização de passeatas, vigílias, criação de escolas, hospitais e também na luta armada. Na década de 1970, a guerrilheira da Frente Popular Para Libertação da Palestina, Leila Khaled, tornou-se mundialmente conhecida pela sua participação em sequestros de aeronaves. As ações visavam chamar atenção do mundo para a causa. 

Leia mais: Qual o papel da religião na violência doméstica?

Ainda que a posse de alguns locais sagrados para o judaísmo, islamismo e cristianismo esteja em litígio, não se trata de um conflito religioso. Grupo fundamentalistas como Hamas, Hezbollah e Jihad Islâmica só ganharam força a partir do fim da Guerra Fria. 

Em suma, há grupos radicais que usam a fé para oprimir. Mas há mulheres muçulmanas que se organizam para lutar. O uso do véu é um sinal de devoção, como as saias e cabelos longos são para as evangélicas ou as perucas são para judias ortodoxas. No caso das palestinas, os lenços com estampa tradicional são também uma afirmação de pertencimento a um povo e a um movimento político.

Na contramão do patriarcado

A opressão patriarcal desconhece fronteiras ou lados do conflito. Isso faz com que as palestinas e suas crianças sejam a maioria das vítimas da guerra Israel-Hamas, e ainda sofram com a violência doméstica, sexual e o feminicídio em suas comunidades. Mas há iniciativas de cooperação bilateral de mulheres buscando construir uma vida em comum. 

A organização Women Wage Peace (Mulheres Ativas Pela Paz), baseada em Israel, foi criada durante um conflito entre Israel e Hamas, em 2014, que matou 73 israelenses e 2,2 mil palestinos. Há quase dez anos, israelenses e palestinas marcham por cidades ora de maioria árabe, ora de maioria judaica, para se manifestarem por uma solução pacífica. Estima-se que tenham 30 mil afiliadas em Israel e na Cisjordânia.

No último dia 4 de outubro, apenas três dias antes dos ataques do Hamas, a organização se reuniu com outros grupos, como Women of the Sun (Mulheres do Sol), fundada na mesma época por palestinas na cidade de Belém. A ideia era formar uma coalizão para dar fim ao derramamento de sangue. 

Leia mais: uma história toda nossa

A união de mulheres em busca de uma solução pacifista não é recente. O Tal’at, formado em 2019, também é uma das iniciativas feministas dedicadas ao combate da violência de ambos os lados, defendendo o fim da ocupação colonial e violência de gênero. Desde os anos 80, grupos como Woman in Black (Mulheres de negro) e Jerusalem Link uniam mulheres para protestar contra as ações militares e cobrar por um desfecho diplomático. 

Por mais que a política estatal e dos grupos paramilitares da região insistam na guerra, mulheres de Israel e dos territórios palestinos não estão sozinhas. Sem deixar de prestar solidariedade às vítimas israelenses dos ataques do Hamas, mobilizações no mundo todo pedem o fim dos ataques e da ocupação da Palestina. A guerra colonial é uma ferramenta do patriarcado, e resistir a ela é uma tarefa feminista. Em nosso nome, não. 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE