Somos obrigadas a lidar, infelizmente, com denúncias diárias de violação dos nossos direitos, de violências das mais cruéis. Em 2015, AzMina nasceu disposta a mudar esse cenário e falar de aborto de forma aberta, sem tabus. Mas, assim como vocês, nos sentimos atropeladas quando três notícias na mesma semana atingem nossos corpos, escancarando em todas as pontas – jurídica, legislativa e social – o controle do patriarcado sobre eles.
Segunda-feira (20 de junho): hospital, promotor e juíza descumpriram leis e impediram uma menina de 10 anos grávida por estupro de fazer o aborto legal, afastando a criança da mãe por 40 dias para manter a gestação. Sexta-feira (24 de junho): a Suprema Corte dos Estados Unidos decide que o aborto não é mais um direito constitucional no país, revertendo decisão de quase 50 anos atrás. E não deu tempo de se recuperar antes do domingo (26 de junho): profissionais de saúde e da mídia violaram a legislação e expuseram uma mulher de 21 anos que fez uma entrega legal para adoção após o parto de uma gestação fruto de violência.
A pauta aborto, que políticos, gestores e formadores de opinião procuram tanto evitar, se impôs. Esteve nos últimos dias estampada em milhares de postagens, sites e grupos. Infelizmente, o jornalismo que cobre aborto como direitos humanos e não revitimiza as vítimas de violência sexual ainda é uma exceção, como foi a reportagem de denúncia do Portal Catarinas com o Intercept, que garantiu que a menina de 10 anos fizesse finalmente o procedimento a que tem direito por lei. No geral, espalharam-se muitos erros, julgamentos, violências e faltas, entre elas a da boa informação.
Nossa equipe se viu ainda mais certa de que a cobertura de direitos reprodutivos deve ser constante e em todos os lugares – não apenas na mídia independente e que tem foco na cobertura de gênero. Não dá para ampliar a discussão só quando tudo desaba sobre nossas cabeças: é impossível qualificar o debate quando mal temos condições de reagir.
Quando AzMina surgiu em 2015, a imprensa tradicional ainda chamava de “crime passional” as ocorrências de feminicídios. A imprensa feminista e independente colaborou para que a cobertura jornalística de violência de gênero melhorasse, mas há ainda um longo caminho a seguir quando o tema são direitos sexuais e reprodutivos. Nós, d’AzMina, estamos há 7 anos – mais de 300 semanas – reportando tudo isso que se tentou resumir em uma semana.
Já trouxemos informações sobre porque o aborto não deveria ser crime no Brasil, como é feito um aborto seguro, quem tem direito ao aborto legal, como funciona o projeto de poder que violenta meninas, o que é violência sexual, entre muitas outras reportagens e colunas… Cerca de 600 conteúdos no nosso site têm a palavra aborto desde 2015. Já fomos atacadas e processadas por informar, inclusive. Mas queríamos que a palavra estivesse em todos os portais, em conteúdos de qualidade, acompanhada do termo descriminalização, que é o que se busca quando se tem acesso aos fatos e dados daqui e de outros países.
Sabemos que essa travessia não começou ontem, e que muitas feministas veem doando suas vidas por ela. A interrupcão da gestação por estupro é permitida no Brasil desde 1940, e deveria ser inadimissível que esse direito ainda fosse questionado; que ainda fosse violado em se tratando de uma menina com menos de 14 anos, vítima de estupro de vulnerável.
Não deveria haver manobra ou interpretação para deixar de reconhecer isso. Mas há – no governo, no Congresso, no Judiciário, nas redes sociais… A defesa da juíza que negou o direito ao aborto à menina de 14 anos alegou que a magistrada agiu pelos direitos humanos dos adolescentes e do nascituro. Essa última palavra, aliás, conservadores estão fazendo de tudo para incluí-la em vários projetos de lei, como mais uma estratégia para nos derrubar e impedir todo e qualquer aborto, mesmo os já previstos. Não à toa estamos há dois anos monitorando o Congresso Nacional para saber quem tem legislado a nosso favor e contra nós, para vigiar e reportar as ameaças aos nossos direitos.
Há pouco mais de um ano, nossa reportagem mostrava que a lei da entrega legal não foi pensada para nós. Entregar um recém-nascido para adoção também é um direito há mais de uma década, mas mulheres encaram preconceito e tabus ao fazê-lo, e isso tem origem no próprio texto da legislação.
AzMina não está sozinha. Vários colegas da imprensa têm pautado a violência contra a mulher, organizações de jornalismo focadas em gênero nasceram para somar forças. Mas enquanto a cobertura de direitos reprodutivos não for tratada como direitos humanos, como tema fundamental e rotineiro, enquanto não forem usadas as palavras corretas, não respeitarem as leis e os corpos de mulheres e pessoas com útero, a sociedade se verá afundada em notícias como as dos últimos dias, tentando submergir para respirar, pegando barcos errados e naufragando mais uma geração de meninas e mulheres.
Pois precisamos nadar mais rápido, contra a corrente. Nesta semana, uma audiência pública vai discutir o novo manual do aborto do Ministério da Saúde, que absurdamente prevê que pessoas que sofreram violência sexual e fizeram um aborto legal sejam investigadas pela polícia. Não vamos “aguentar mais um pouquinho“.
Aborto não é bandeira eleitoral. Não dá para continuar vendo colegas da imprensa indo perguntar o que a oposição acha quando um candidato fala sobre o tema. Não dá para tirar esse assunto dos planos de governo eleitorais para evitar polêmicas. Aborto não tem controvérsia, é direito humano.
Chega de narrativas de feminicídio e violências contra a mulher que mantêm os agressores no anonimato ou na voz passiva. Também não vamos concordar com veículos que revitimizam mulheres o tempo todo, sob a chancela de governos e autoridades violentas. Nem aceitar veículos e textos que expõem uma vítima de violência brutal. Tudo isso exige mudanças estruturais, vigilância diária, manuais de como cobrir, responsabilidade e ativismo.
Esse editorial é uma declaração de luta e repúdio, um mergulho e um bote salva-vidas.