Foi num parágrafo impresso na carteira de pré-natal do SUS que Maria*, 45 anos, , aos cinco meses de gestação, descobriu em 2007 que podia entregar o bebê para adoção sem ser criminalizada, por isso, a barriga já despontava quando tomou a decisão, e ela sentiu duas coisas: medo e desamparo. Para além daquele único parágrafo, ninguém à sua volta falava sobre o assunto. Conversar sobre uma criança que ela não queria e não podia criar naquele momento da vida era um tabu. Assunto ainda mais proibido para uma mulher que já era mãe de outros três filhos e estava casada.
“Eu comentei com uma amiga que estava pensando em não criar mais aquela criança e ela me respondeu. ‘Você está louca, devem ser os hormônios da gravidez. Quando a criança nascer você vai amar, Deus sabe o que faz e esse bebê vai ajudar o seu casamento’. E eu nunca mais falei sobre isso com mais ninguém”, contou.
Não eram os hormônios e a auxiliar administrativa sabia muito bem o que queria. “Ter engravidado de um homem que me batia, que fazia a minha vida e a dos meus filhos um inferno, foi muito ruim”, lembra. E foram nove meses de gestação traumatizantes, em que ela chorava o tempo todo. “Chorava por não querer ter um filho que já estava na minha barriga, chorava por sentir que estava rejeitando a criança. Chorava por saber que o bebê não tinha culpa. Chorava por não poder dar a ele o amor que ele merecia. Foram os piores nove meses da minha vida. Foi pior até do que apanhar”.
Maria fez todo o pré-natal pelo SUS e a decisão de entregar a criança após o nascimento foi comunicada à médica que fazia o acompanhamento da gestação no posto de saúde . “Em toda consulta eu queria falar que não ficaria com o bebê. Mas como ninguém no posto falava sobre isso, fiquei com medo. Até que falei pro pai das crianças que na próxima consulta eu contaria pra médica e pedi pra ele ir comigo. Ele disse ‘você vai sozinha’. E eu fui”. No entanto, ela conta que a médica a tratou com indiferença e nunca mais tocou no assunto nas consultas seguintes.
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A criança foi entregue para adoção e ficou sob a custódia da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus assim que nasceu, em uma maternidade pública paulista. Depois disso, ela mudou de cidade com a família e se isolou, porque não queria que as pessoas perguntassem o que aconteceu. “Para os mais próximos, falei que o bebê tinha morrido no parto. Nunca tive coragem de dizer que deixei ele lá. Eu sei que as pessoas me olhariam diferente”.
A auxiliar administrativa nunca foi criminalizada judicialmente por sua necessidade e decisão, uma vez que o direito da entrega da criança sem sanções administrativas é previsto na Lei Federal nº 12.010/2009, conhecida como Nova Lei Nacional de Adoção, desde que a entrega seja feita junto à Vara da Infância e Juventude ou maternidade. No entanto, apesar de ser um direito da mulher, a entrega legal é cercada de problemas, que vão desde o preconceito e despreparo dos profissionais que lidam com essas mulheres, passando pela desinformação e até questões na forma como a lei foi construída.
O que diz a lei
O texto da lei prevê que as gestantes têm direito à assistência psicológica no pré e pós-natal. “A mulher tem o direito de fazer essa entrega de forma protegida, tendo sua identidade mantida em sigilo, sem sofrer qualquer sanção e recebendo respaldo e acolhimento durante o processo”, explica o juiz Iberê de Castro Dias, juiz da Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos e assessor da presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Assim que informa sobre a entrega, uma equipe multiprofissional acompanha a mulher para tentar identificar os motivos. “É necessário garantir que seja a vontade desta mulher, e não uma pressão do pai da criança, por exemplo. Há casos em que há um relacionamento fora do casamento e a mulher engravida e sofre a pressão para abortar clandestinamente ou entregar a criança. Outro caso comum é a mulher abrir mão dos filhos por falta de dinheiro. Tem também a depressão durante o puerpério ou pós-parto. Identificados esses cenários, tentamos auxiliar com outros encaminhamentos. Tudo para garantir que ela não entregue essa criança pressionada,porque depois ela vai sofrer no futuro”, explica o juiz.
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As mulheres não são obrigadas por lei a fazerem o pré-natal. “Mas se ela comunica já durante a gestação que quer entregar a criança, é feito um trabalho de sensibilização para que ela faça as consultas. Explicamos que aqui não é por ela, é um direito da criança se desenvolver de um modo saudável. Vale ressaltar que esse argumento não pode ser uma razão para vetar o aborto, por exemplo. Legalmente a criança adquire direitos a partir do momento que nascem. Então essa é uma outra discussão”, pontuou o juiz.
O processo de entrega só é consolidado após o nascimento da criança, quando é confirmada sua decisão. “Isso porque há uma chance da mulher se sensibilizar e querer ficar com a criança depois de nascida”.
“Tinha sessão que eu saía pior do que entrava”
Apesar da lei prever atendimento psicológico para a mulher que opta pela entrega legal, na prática, elas encaram também o preconceito até dos profissionais de saúde, refletindo uma sociedade que ainda não reconhece o direito de escolha das mulheres.
Maria teve acesso a todos os direitos previstos na lei, mas mesmo assim ela conta que no acolhimento psicológico foi incentivada a desistir da decisão. “Em toda sessão me perguntavam se eu tinha certeza do que queria, que eu já era mãe e sabia o que aquela criança ia passar. Tinha sessão que eu saia pior do que entrava. Só depois que contei as situações de violência foi que consegui ajuda, sem me perguntarem se eu tinha certeza de que queria entregar o bebê”, detalha.
A romantização da maternidade também pressiona mulheres a assumirem um papel do qual nem sempre estão ou querem estar dispostas. A própria lei da Entrega Legal, por exemplo, não foi pensada para acolher a escolha feminina, apesar de parecer fazê-la. “Foi pensada para garantir que a criança seja entregue em totais condições de saúde e não abandonadas em caçamba, lixo, ou outra situação que a coloque em risco”, diz Iberê de Castro. Segundo ele, ela é um direito da criança, muito mais do que da mulher, que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para especialistas, o texto da lei reforça que, em alguma medida, a mulher que está grávida já é mãe do bebê, embora a maternidade seja construída além do processo fisiológico. Como pode ser visto no parágrafo cinco que determina que a assistência prevista na lei “deverá ser também prestada a gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção.”
“A falha com que os textos de leis são redigidos estão explicados porque são homens que escrevem e homens que aprovam. Ele já vem carregado com esse peso de que mulheres devem aceitar a maternidade a todo custo, por exemplo. Tem muito a ver com o histórico da construção da nossa sociedade”, explica Mari Mendes, professora da rede pública de ensino e coordenadora do Fórum de Mulheres Filhas da Luta.
Para ela, as discussões sobre o corpo e os direitos das mulheres estão atrasadas, ainda mais quando o tema aborda maternidade.”Todas as leis que envolvem a maternidade, acabam questionando o direito das mulheres. Um exemplo está na área da educação. As crianças têm o direito garantido à creche e quando falamos sobre a importância desta vaga como instrumento de libertação das mulheres, a sociedade no geral questiona. Na maioria das creches, se as mulheres não trabalham fora de casa, elas não têm a garantia da vaga Não enxergar o direito da mulher dentro da maternidade, de escolhas, de acessos a direitos, trava muitas lutas”.
Para Maria, isso tudo deixou marcas que a acompanham até hoje, com medo do julgamento e pelo trauma de encarar uma gestação problemática. “Ter mais um filho fruto dessa relação era uma tortura a mais pra mim. Mesmo eu estando numa situação grave de violência, as pessoas não entendiam que eu não queria ser mãe de novo. Até hoje quando eu penso nisso dói. Me sinto aliviada por não ter trazido mais uma criança pra casa. Depois me sinto culpada por isso”, conta ela.
Se a entrega é legal, porque ainda há abandono?
Histórias como a de Maria não são poucas. Em 2019, 175 recém-nascidos foram entregues às unidades da Vara da Infância ou maternidade. Mas no mesmo período, outros 151 foram abandonados em vias públicas, segundo dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Já em 2020, 107 foram abandonadas e 149 foram entregues em segurança (até o mês de setembro).
Para o juiz Iberê de Castro, o número muito próximo entre as entregas de recém-nascidos e o abandono é reflexo da desinformação sobre a lei e, principalmente, consequência do preconceito e machismo. “O que temos experimentado é um problema com relação à mulheres em situação de vulnerabilidade, muito pelo contexto social que elas vivem, onde o Estado aparece como opressor, prendendo ou matando os filhos daquela mesma mulher, por exemplo. Então é natural que na cabeça delas haja essa compreensão de que se procurarem o Estado para entregar essas crianças, serão presas”.
Mari Mendes lembra também que há desconhecimento sobre a lei. “Houve um tempo em que as mulheres não podiam entregar as crianças para doação. .No imaginário popular não existe ainda a doação legal, essa entrega é sempre feita de forma clandestina”
A responsabilidade masculina também não pode ser esquecida. Iberê conta que muitas vezes em que há a entrega de uma criança, já estão em cena as consequências do abandono paterno. “Basicamente, em todas as vezes em que uma mulher decide entregar um recém-nascido, ela está sozinha. Não é raro também que as mulheres não queiram informar quem é o pai da criança neste processo”, conta. E reforça que é necessário repensar estruturas sociais que estão para além do judiciário, para que isso se reflita em leis que assistam de forma mais integral às mulheres. “Sem isso, os dispositivos jurídicos também ficam limitados. É uma questão social”.