Que o aborto é crime no Brasil todo mundo sabe. Mas é importante saber também que é permitido interromper a gravidez dentro da lei e no SUS em três casos: em situações de gravidez resultante de violência sexual, anencefalia do feto e quando a gestação oferece risco à vida da mulher.
E como a mulher que se enquadra em um dos casos pode ter acesso ao aborto legal? Até qual idade gestacional é permitido interromper a gestação?
A então coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, Paula Sant’Anna Machado de Souza, explica quais são as regras para cada situação e o que fazer para garantir que seu direito seja cumprido.
Aborto em caso de gravidez resultante de violência sexual
A mulher ou menina vítima de um estupro que resulte em gravidez tem direito de interromper a gravidez pelo SUS. Vale ressaltar que estupro (violência sexual) não é apenas o abuso sexual cometido por um desconhecido com uso de violência física. Muitas vezes, a violência sexual pode acontecer dentro de casa, vindo até mesmo do namorado ou marido.
Para ficar claro: violência sexual é qualquer ato sexual que não foi consentido. Inclusive quando a mulher deixou claro que só vai ter relação com camisinha e o homem tira o preservativo sem avisar a ela.
Nesses casos, o que fazer:
1. Procurar atendimento o quanto antes
É muito importante que a mulher procure um posto de saúde ou um hospital para receber os primeiros cuidados médicos e psicológicos. Isso inclui receber remédios para contracepção de emergência (conhecida como pílula do dia seguinte) e prevenção de IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis), com a profilaxia pós-exposição (PEP). Mas mesmo quem não fizer esse atendimento logo após a violência tem direito ao aborto.
2. Não precisa fazer boletim de ocorrência
Não é necessário apresentar nenhum documento como BO (boletim de ocorrência na polícia) ou laudo do IML (Instituto Médico Legal). Para o atendimento, a palavra da mulher é o que vale e todos os documentos necessários serão produzidos no hospital. A mulher vai precisar assinar dizendo que está ciente, que autoriza o procedimento e que os fatos relatados são verdadeiros.
3. Prazo para interrupção: não há
A lei não especifica um prazo para o aborto dentro dos casos previstos, mas a maioria dos hospitais que fazem o serviço legal determinam os próprios limites, alguns até a 22ª semana de gestação, o que estaria em desacordo com a legislação vigente.
4. Atendimento humanizado
É previsto em lei o atendimento humanizado à mulher, ou seja, não pode haver julgamentos ou humilhações. Ela deve passar por atendimento psicológico, assistência social e ter um acompanhamento médico, além de realizar um ultrassom para verificar o tempo de gestação e se ele corresponde com a data em que vítima sofreu o abuso.
“O ultrassom é para identificar um tempo aproximado, muitas mulheres não lembram a data exata, afinal, é um evento traumático, então não precisa ser exato”, explica Paula.
Após uma reunião com todas as partes do atendimento será decidido se a mulher pode realizar o aborto ou não, sempre de acordo com a lei.
Leia mais: Como é feito um aborto seguro?
Aborto em casos de anencefalia do feto ou risco à vida da mulher
Quando a gravidez coloca a vida da mulher em risco é permitida a realização do aborto para salvá-la. Além disso, desde 2012, o procedimento também é permitido quando é comprovada a anencefalia do feto (ausência ou má formação do sistema cerebral), por meio de ultrassonografia. Mas, ainda assim, muitas mulheres não conseguem realizar o procedimento em casos de anencefalia.
Para ambos os casos, não é necessária autorização judicial para a interrupção da gestação, apenas laudo médico. Entenda:
1. Laudo médico é obrigatório
Para pedir o aborto nesses casos é preciso levar o laudo assinado por dois médicos comprovando a anencefalia fetal ou que a gravidez pode gerar algum risco à vida da mulher. No segundo caso, não há doenças especificadas por lei para a realização do procedimento.
2. Tempo para procurar o serviço de aborto
Não há um tempo máximo para realizar os abortos nesses casos, porém quanto mais rápido, melhor. É preciso lembrar que, caso a gravidez esteja com mais de 22 semanas ou o feto tenha mais de 500g, o hospital precisa ter uma estrutura de maternidade para fazer o procedimento.
3. Atendimento humanizado
A mulher tem direito a acompanhamento humanizado e suporte de uma equipe multidisciplinar, ou seja, médicos, psicólogos e assistentes sociais, além de acompanhamento e suporte pós-aborto.
Leia mais: Mulheres têm dificuldade de acesso a aborto legal
Onde eu procuro esses serviços?
Não são todos os hospitais públicos que realizam o procedimento. O Ministério da Saúde disponibiliza uma lista das instituições onde o aborto pode ser realizado, mas como nem todos de fato o fazem, a Artigo 19 conferiu onde a mulher realmente consegue ser atendida. As informações podem ser encontradas no Mapa Aborto Legal.
E se eu for menor de idade?
Para as meninas menores de idade é preciso uma autorização de um dos responsáveis para que o aborto seja realizado dentro da lei. No entanto, pode haver divergências: há casos em que a adolescente quer fazer o procedimento, mas a família não autoriza, e outros em que ela não quer, mas a família tenta obrigar.
Nestes casos, Ana Paula recomenda procurar a Defensoria Pública ou um órgão do governo que possa apoiá-la para ter sua vontade respeitada.
Leia mais: 8 razões por que aborto NÃO deveria ser crime no Brasil
Meus direitos foram negados, e agora?
Médicos têm direito a se recusar a realizar a interrupção da gestação por objeção de consciência (por motivos religiosos ou crenças pessoais), no entanto, o hospital precisa ter obrigatoriamente um profissional que realize o procedimento.
Se a mulher sofreu violência sexual e após passar por todos os atendimentos foi informada que não estava dentro da lei para realizar o procedimento, o acesso ao prontuário é fundamental para entender o que está acontecendo.
“É importante que a mulher seja informada do que está dentro da lei e como o procedimento deve ocorrer. Ela tem direito a ter acesso ao prontuário médico, caso receba uma recusa, para conseguir avaliar e levar até a defensoria, caso seja necessário”, explica Paula.
Se seus direitos não foram cumpridos, você deve entrar em contato com o seu advogado ou com a Defensoria Pública o mais rápido possível.
O Nudem fez uma cartilha sobre o aborto legal que você pode ter acesso aqui e um levantamento sobre os serviços de referência no Estado de São Paulo.
Atualizações
- 15 de janeiro de 2024 12:00
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Esta matéria foi atualizada para corrigir que não existe impedimento legal ao aborto nos casos previstos na legislação após as 22 semanas de gestação. Existe uma Norma Técnica do Ministério da Saúde que faz essa orientação de prazo limite, mas ela não tem força de lei, sendo inclusive alvo de críticas, justamente por restringir o acesso à interrupção da gravidez especialmente para crianças e adolescentes e mulheres em situação de vulnerabilidade, que têm dificuldade de acesso a serviços de saúde e/ou ao diagnóstico precoce.
Norma Técnica: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ prevencao_agravo_violencia_ sexual_mulheres_3ed.pdf (p. 81) Art. 128 Código Penal