No atual momento de pandemia onde o trabalho dentro de casa para boa parte das mulheres aumentou consideravelmente e, relembrando a célebre frase da filósofa e feminista Silvia Federici “Isso que chamam de amor é trabalho não remunerado”, nos perguntamos em que momento os homens vão topar encarar uma transformação radical em relação aos cuidados dos filhos e também a repensar a masculinidade nociva que impede experiências pessoais satisfatórias. Esse e outros pontos emergem no artigo preparado pela pesquisadora Camila Pires Garcia com exclusividade para AzMina. Confira:
Nas últimas décadas, as mulheres conquistaram amplos direitos referentes ao ambiente público (trabalho, voto, divórcio, autonomia do corpo), mas a divisão sexual do trabalho no ambiente privado continua sendo reproduzida, ao serem elas as responsáveis pelo cuidado das crianças e tarefas domésticas. Isto se reflete nos dados, que mostram como as brasileiras realizam o dobro de trabalhos não remunerados do que os homens, mesmo realizando cargas de trabalho remunerado semelhantes, segundo um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2016. E esta relação desigual tende a aumentar com o isolamento social.
Pesquisas europeias demonstraram que durante o confinamento cerca de 60% das francesas declararam estarem realizando mais trabalhos domésticos do que seus companheiros, sendo as principais responsáveis pela preparação de alimento, tarefas domésticas, cuidados e deveres escolares das crianças. Levantamento com as mães britânicas mostrou que elas estão sendo também as principais impactadas com as interrupções durante o período de trabalho remunerado, tendo em média 1 hora de trabalho sem interrupção para cada 3 horas trabalhadas do companheiro.
E isto acontece porque a desigualdade de gênero se mostra enraizada no imaginário coletivo, como podemos constatar na fala da antropóloga Adriana Piscitelli, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero-PAGU: “para o senso comum, a capacidade de conceber filhos das mulheres costuma ser interpretada como principal atividade destas e, portanto, a maternidade, o espaço doméstico e familiar são visto como seu principal local de atuação”. Portanto não atuação do pai/homem.
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Ao colocarmos todos no ambiente doméstico, os dois princípios organizadores nas sociedades patriarcais tendem a ser reforçados, o princípio da separação (existem trabalhos diferentes para homens e mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho dos homens vale mais do que das mulheres), segundo as sociólogas Helena Hirata e Danièle Kergoat .
Isso se reflete muitas vezes nos tipos de atividades realizadas pelos pais, como vemos que a maioria dos pais brasileiros relata brincar com as crianças (83%, segundo o IPEA), no entanto, atividades como dar banho (55%) e cozinhar (46%), são bem menos citadas e acabam sendo destinadas majoritariamente de forma compulsória às mães.
Mesmo que exista um crescente interesse dos homens em participar do cotidiano e crescimentos dos filhos, que considerem esta função tão importante quanto a profissional, os estereótipos ligados a gênero desencadeiam tensões nas relações sociais. Assistimos o aumento no debate sobre divisão de tarefas e carga mental, mas na prática, pais participativos ainda são a exceção.
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No entanto, um dos fatores apontados como desencadeador de mudança é a vivência do cotidiano com filhos no ambiente privado. Para as famílias que têm o direito de ficar em isolamento social, o diálogo tendo em mente os aprendizados relacionados a paternidade participativa podem ajudar a definir uma nova perspectiva familiar.
Preconceitos, medos e dúvidas
Muitos homens sentem ainda um conflito grande entre os papéis tradicionalmente atribuídos ao homem e o seu papel de cuidadores, sendo estes papéis não raras vezes entendidos como opostos ou irreconciliáveis.
Essa transformação tem desencadeado um misto entre celebração pelos “novos pais” ao mesmo tempo do receio de uma fragilização — e até desaparição — do papel paterno em relação ao materno. Apesar da maioria das mães desejar uma maior participação paterna (93%), temem perder sua importância e autoridade no ambiente privado e (67%) desejam continuar a ter a palavra final de como o trabalho doméstico deve ser feito, segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo e SESC, de 2010.
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Para enfrentar o medo, a recomendação aqui é lembrarmos que as diferenças tidas como inatas não estão associadas ao gênero, mas sim aos diferentes tipos de temperamento, dons e talentos de cada indivíduo inserido em culturas diferenciadas, independente do gênero.
E que possivelmente parte dos seus antepassados vivia em outra dinâmica social, como lembra a socióloga argentina Maria Lugones: “Nas sociedades ameríndias e africanas não havia um sistema de gênero no qual as mulheres deveriam ocupar papéis subalternos e passivos, e os homens papéis de dominação e governo. Assimilamos a divisão sexual de tarefas típicas das sociedades modernas europeias”.
Muitos pais desejam participar do cuidado, como mosrrou a pesquisa “Helping Dads Care”: 82% dos pais brasileiros disseram que fariam tudo o que for necessário para estar muito envolvido com o cuidado do do recém nascido nas primeiras semanas ou meses. O desconhecimento do ambiente doméstico, a falta de referências de pais participativos e o silêncio em relação à sentimentos pode acabar afastando eles do cuidado.
Para lidar com a dúvida, a proposta é promover o diálogo, remanejar combinados e estar aberto a novas configurações que podem surpreender, pois apesar de reduzir os privilégios masculinos, podem abrir espaço para uma relação duradoura de parceria e igualdade.
A quarentena se apresenta como um momento favorável para a mudança. Pela 1º vez no Brasil, temos o tempo para tal adaptação (para quem pode estar de quarentena), a demanda social por igualdade de gênero, somado ao respaldo jurídico com leis explícitas e medidas jurídicas e sociais para garantir a integridade das mulheres e direitos iguais.
Mesmo que o governo negligencie o tema no ambiente público, fica a sugestão para reflexão de transformar neste momento o seu ambiente privado.
Camila Pires Garcia é mestranda em Antropologia na Université de Paris V e que há 4 anos estuda paternidade participativa no Brasil e atualmente trabalha com pesquisa etnográfica com pais solos na França.