
Desde que a bomba do coronavírus estourou (falo da real conscientização da gravidade do assunto aqui no Brasil), lidamos com uma enxurrada de informação (sem contar os falsos entendimentos) e uma guinada de 180 graus na rotina. O vento foi forte, tudo ao redor fechando as portas, o eminente sentimento de ruptura presente e o recado em caixa alta do cosmo: VOCÊS NÃO TÊM CONTROLE DE NADA.
Em meio a tudo isso, me vi pela primeira vez numa crise, bem branda, de ansiedade. Quando observei que meu modus operandi estava diferente (respiração/sentimentos/sensações) dei uma volta na quadra, liguei para amigos próximos que já enfrentaram a situação e entrei em contato com a minha terapeuta. Fiz a minha parte: procurei ajuda, confiei e esperei passar.
Dias depois recebi a ligação de uma pessoa que estava um pouco distante. Narrei o episódio e na sequência veio a pergunta: “Você tá tomando remédio?”. Respondi: “Claro que não, nem cogitei”. Silêncio, mudamos de assunto, desliguei. Não estava muito a fim de aprofundar naquele momento. Penso que, tomar remédio para ansiedade (ainda mais sem consultar especialistas em distintas áreas), não é tratar a questão.
Entra em jogo aqui um conceito que está na moda, mas que nem sempre é entendido em toda a sua dimensão revolucionário: autocuidado. Acostumadas ao papel de cuidadoras, muitas vezes achamos que cuidar de nós mesmas é egoísmo. Mas já dizia a brilhante feminista negra Audre Lorde que autocuidado é revolucionário, especialmente para mulheres negras.
“Cuidar de mim mesma não é auto indulgência, é uma autopreservação e isso é um ato de guerra política”, diz Lorde, escritora americana-caribenha, mulher negra e lésbica. Ou seja, não é egoísmo olhar para si como prioridade, mas sim amor-próprio.
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Um ato de resistência desafiar o papel que há séculos é atribuído às mulheres, a “cuidadora” da casa, filhos, familiares doentes, idosos e administradoras do cotidiano. Sempre bom destacar que tais funções são, na verdade, trabalho não remunerado, a chamada dupla, tripla jornada. E quem cuida das cuidadoras?
No caso de mulheres negras e periféricas, que muitas vezes são empregadas domésticas, não sobra nem tempo para cuidar de si ou da própria família, já que existem patrões que seguem com a mentalidade colonial pautada na estrutura hegemônica de que a casa grande está acima da senzala.
Autocuidado x válvula de escape
Não estou desconsiderando a necessidade (e eficácia) do uso de bons medicamentos. Mas por que para muitas mulheres essa é muitas vezes a primeira, ou única, alternativa apresentada? Questão cultural, social, econômica? Será a criação? Fora a necessidade de se sentir produtiva na atual conjuntura (onde diversas contas no Instagram mostram pessoas que estudam, fazem exercícios em casa, cozinham, maratonam séries, etc) e não permitir momentos de ócio.
Pesquisa Google informa: Brasil é o país mais ansioso do mundo e o mais depressivo da América Latina, mulheres são maioria. Acredito que a solução não deve estar exclusivamente num comprimido. Depressão é uma doença grave e séria, não é apenas tristeza. Necessário sempre consultar especialistas da área da saúde.
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Certa vez escutei uma frase que nunca esqueci: “todo excesso implica numa falta”. Então seja sexo, drogas, álcool, uma jornada exaustiva de trabalho ou até mesmo de atividades físicas podem ser usados como amortecedores ou fuga do que evitamos sentir.
Separar um tempo só para você e olhar com carinho para a sua existência são atitudes que vão além de cuidados estéticos – que pode emergir como conseqüência de um genuíno amor que começa de dentro para fora. Autocuidado é algo construído com disciplina, onde o foco não é agradar alheios, apenas você. Um processo de aprendizado que com toda certeza vai interferir de forma positiva na sua autoestima.
Compreendendo com mais profundidade o pensamento de Lorde, autocuidado é a intenção de optar por uma rotina alimentar mais saudável, estar em dia com exames ginecológicos, separar um tempo no dia para aquietar a mente, buscar ajuda, redes de apoio, saber impor limites e dizer não sempre que quiser. Tudo isso pode te ajudar a manter firme o alicerce da tão almejada força interior necessária na caminhada contra a demanda de opressões e que edifica bases individuais para podermos nos doar com energia e vigor em práticas coletivas.