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14 de maio de 2020

“A quarentena me mostrou que cozinhar pode ser sinônimo de autonomia e refúgio”

Empoderamento e cozinha são duas palavras que meu feminismo nunca tinha associado

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Minha vó foi a primeira de uma família de cinco mulheres. Cresci vendo ela cozinhar no fogão à lenha o que plantava e colhia. Ficava brincando com o fogo, enrolando biscoitinhos com as letras de nossos nomes com ela e nossas tias-avós. A cozinha era o melhor lugar da casa. O lugar onde minha vó e suas irmãs nos enchiam de amor em forma de bolachinhas e pães caseiros, pão de queijo, almoços de mesa cheia e sem pressa.

Quando era época da colheita, todas as irmãs se reuniam pra debulhar, ralar e transformar o milho em pamonha, curau e bolo. Na hora do almoço, minha avó gritava “Geraaaaardo” e meu avô aparecia algum tempo depois, enquanto eu imaginava as distâncias que a voz da minha avó percorreu para chegar até ele.

A maioria dos homens da família fazia parte desses rituais só quando chegava a hora de comer. A cozinha era o ambiente das mulheres e foi ajudando ali que eu conheci as histórias de cada uma delas. Os tempos em que minha avó deixou o campo foi morar na cidade. Os bailes de Carnaval da minha mãe, o machismo e as brincadeiras do meu bisavô, o retorno pra Minas e pro campo. Cozinhar naquelas horas era um ato de amor entre eu e elas. 

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Eu demorei muito pra ter essa relação com a cozinha. Comecei a cozinhar quando ainda precisava subir em um apoio pra chegar na altura do fogão, obrigada a ajudar para aliviar o fardo da minha mãe com as tarefas da casa. Meu irmão e meu pai, obviamente, poupados dessa divisão.

Só mesmo um homem que nunca dividiu as tarefas em casa vai achar que igualdade na divisão de tarefas domésticas é uma demanda “banal” do feminismo – sim, eu já ouvi esse tipo de “argumento”. Segundo o Dieese, as mulheres gastam quase duas vezes mais tempo em tarefas domésticas que os homens. Todo ano, é como se trabalhássemos 3 meses mais que eles cuidando da casa e da família. 

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Se estamos exaustas e sobrecarregadas, se estamos na cozinha por pressão social ou obrigação, fica mais difícil perceber que preparar o alimento com calma e cuidado pra nós mesmos ou para aqueles que amamos pode ser prazeroso. Só quando eu comecei a cozinhar sozinha e depois quando fui compartilhar as receitas que aprendi com minhas avós, tias e mãe, é que fui me dando conta que a cozinha também é espaço de criatividade, partilha e afetos.

Mas foi só nessa quarentena que eu entendi que cozinhar pode ser também autonomia e refúgio. É poder fazer aquela comida que te acalma, é poder presentear a companheira de isolamento com um bolo quentinho, é poder comer bem pro corpo aguentar o tranco das oscilações de humor. Empoderamento e cozinha são duas palavras que meu feminismo nunca tinha associado.

Isso na minha pequena bolha, onde o que deveria ser direito de todos vira privilégio de quem pode trabalhar de casa e colocar comida na mesa. E a bolha fica ainda menor porque sei que tem muitas mulheres que estão sobrecarregadas pelo fardo doméstico, gerindo filhos, trabalho, limpeza, comida, etc. 

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Ainda assim, neste lugar de privilégio, vejo também alguns homens refletindo sobre sua relação com o fogão. Com um desses amigos e uma amiga, criamos um grupo no WhatsApp só pra falar de comida. A gente troca receitas, dicas de compras, truques de como abrir potes de geleia, manda foto dos sucessos e dos fracassos e reflete sobre os múltiplos significados que comer e cozinhar podem ter.

Isso me faz ter um pouco de esperança. Será que finalmente eles percebem que o privilégio que por tanto tempo manteve os homens afastados da cozinha é também limitador (afinal, ser capaz de preparar seu próprio alimento gera independência e economia)? Homens, aproveitem a quarentena para explorar cada canto de suas casas para então descobrir que a cozinha é o melhor deles.

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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