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gabi literatura
28 de outubro de 2024

Livros para romper com os padrões maternais

Histórias e personagens desafiam a ideia da maternidade como parte das mulheres, mesmo as que não são mães

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Colagem digital mostra um mulher tentando se desprender de um espelho onde vemos outra mulher empurrando um carrinho de bebê. Ela caminha de braços abertos, num gesto de liberdade, tentando romper a corda que a prende ao espelho, onde está refletida a obrigação de ser maternal

No livro Manifesto antimaternalista, a psicanalista Vera Iaconelli explica com exemplos, relatos, referências e contrarreferências como se construiu o ideal de maternidade que prevalece no Ocidente. O maternalismo coloca mães em um lugar de eternas cuidadoras e destina a elas uma vida de sacrifícios.

Como tantos arranjos sociais, a ideia de mães insubstituíveis, que não erram e não faltam, é ardilosa e sedutora. Parece estar baseada numa valorização absoluta da cuidadora e num vínculo profundo e inquebrantável, que demanda dedicação radical, mas entrega como contrapartida a possibilidade de ser o centro da vida de outra pessoa.

É uma pegadinha. Vera Iaconelli olha o que a repetição desse discurso esconde e encontra sobrecarga de trabalho, culpabilização ostensiva, solidão e perpetuação da subalternidade.

Há complexidades nisso, claro, mas vou tomar a liberdade de não falar delas aqui. Recomendo a leitura do livro, que mostra como o maternalismo serve a modelos burgueses, conta o que acontece quando pensamos nele de forma interseccional e explica que o movimento maternalista não viveu só de perdas; foi importante para conquistas que vieram ao longo do século XX. A psicanalista afirma, no entanto, que as premissas que sustentam essa ideologia têm servido à manutenção das desigualdades de gênero e é hora de mudar de ideias.

Maternalismo onipresente

O que me levou ao livro de Vera Iaconelli foi a percepção de que não é preciso ter filhos para se ver reproduzindo uma lógica maternalista, e esse é um tema que tem me acompanhado. A ideia de que mulheres cuidadoras são mais mulheres do que as outras, e mães que se adequam ao “padrão-ouro de cuidado” (para usar uma expressão do livro) são mais mães do que as outras colou. E muitas mulheres se colocam nessa posição em diferentes relações – em casamentos, em amizades, e até no vínculo com pais e mães.

Nos relacionamentos maternalistas fora da configuração mãe e filhos, perde-se um elemento de sustentação desse discurso: o instinto. Mas não há problema, damos um jeito de sustentar essa posição de outra forma, para supostamente continuar ganhando o selo de mulher ideal.

Por muitos anos, me peguei constantemente em situações assim, criando relacionamentos baseados em uma entrega abnegada e em uma lógica unilateral de cuidado. Olhando em retrospecto, vejo como eu chegava a rejeitar que cuidassem de mim  para não ver ameaçado o posto de cuidadora absoluta. Na faculdade, um dos meus melhores amigos me apelidou de “mãe”; triunfei, né?

Era conveniente. Eu parecia uma pessoa boazinha e generosa, disposta a abrir mão de coisas e de vontades pelos outros; ótimo para a minha imagem. Vi amigas, com mais ou menos ênfase, no mesmo processo. Nós não somos da geração que cresceu discutindo os feminismos. O maternalismo, me parece, era onipresente: tínhamos que crescer para ser mães, mesmo que não tivéssemos filhos.

Leia mais: Maternidade no capitalismo: nasce uma mãe, nasce um manual

Outros padrões

Não é simples quebrar padrões, deixar para trás lugares que nos garantem aceitação e experimentar viver de forma mais fiel ao que intencionamos. É um processo que inclui encontrar novos parâmetros, conhecer outros jeitos de estar no mundo.

Terapia ajuda, as trocas com outras mulheres ajudam e os livros ajudam. Neles, estão mulheres insubmissas, mulheres que rompem, mulheres que não se parecem em nada com a imagem maternal que serviu a tantas de nós como modelo.

Em A outra língua das mulheres (traduzido por Carolina Selvatici e Emilie Audigier), a escritora camaronesa Léonora Miano traz uma série de referências discursivas de mulheres subsaarianas. Ela reúne histórias do continente africano que mostram lógicas diversas do feminino.

Olhando para cosmogonias subsaarianas que colocam mulheres em espaços de força e destaque, inclusive no contexto da maternidade, a autora também aponta armadilhas (sobretudo quando deslocamos esses modelos para relacionamentos heterossexuais atuais). Ela escreve:  “(…) a sacralização não do feminino, mas da maternidade – que, no entanto, é apenas uma eventualidade – pode complicar as relações entre homens e mulheres hoje. Como a mulher é mãe sobretudo no plano simbólico, a sociedade espera que ela tenha uma capacidade quase sobrenatural para suportar os problemas de um homem que, no fundo, só pode ser uma criança.

Mas o próprio imaginário traz alternativas a essas amarras, a fabulação subsaariana não está calcada no mito da virgem que virou mãe, como a de sociedades ocidentais cristãs. Léonora fala, por exemplo, do mito ruandês que dá lugar a mulheres vibrantes, uma história que propõe que “o gozo feminino é fecundo em si, que ele não deveria ser objeto de nenhum controle específico e que cabe às mulheres buscá-lo.

Em cosmogonias africanas, estão rainhas que deixam marcas no mundo não como procriadoras, nem como cuidadoras, mas como mulheres que desejam.

Amor condicional 

Na primeira vez em que participei de um clube do livro para discutir A filha perdida, livro de Elena Ferrante (traduzido por Marcello Lino), a protagonista dividiu opiniões entre as leitoras.

Leda é uma professora universitária que em férias no litoral italiano. Nos dias de praia, é vizinha de uma grande família. Ela acompanha atentamente a dinâmica do grupo, com especial interesse em Nina, uma mulher jovem e mãe da pequena Elena, que está sempre acompanhada de uma boneca.

A maternidade de Nina faz Leda voltar no tempo e revisitar momentos em que as duas filhas, agora crescidas, eram crianças. É assim que acessamos seu passado e  descobrimos que, quando as meninas eram pequenas, ela escolheu ficar um período longe, estudando e trabalhando, e deixou as duas com o pai.

Leda vive uma relação ambígua com a maternidade e isso chocou parte das leitoras – era um momento em que ainda não se falava com tanta frequência que ser mãe tem lá seus perrengues. Mesmo que se admitisse dificuldades nesse papel, assumir condicionalidades para esse amor e ir embora (ainda que temporariamente e sem abandono) era demais.

Leia mais: A literatura é janela para as maternidades possíveis

Eterna cuidadora

Nem precisa se tratar de uma mãe para que a ideia de partir rumo a uma aventura desperte julgamentos pouco gentis. Mesmo mulheres sem filhos que quebram o padrão de permanecer e cuidar incomodam.

Em As aventuras de China Iron, da escritora argentina Gabriela Cabezón Cámara (traduzido por Silvia Massimini Felix), a protagonista escapa do marido indesejado e percorre os pampas com o cachorro Estreya e com Liz, uma britânica de quem ela vira amiga e amante. “Partimos os três. Não senti que estava deixando nada para trás, apenas a poeira que a carroça levantava, que era, naquela manhã, muito pouca (…)“. 

O livro é uma espécie de paródia do poema Martín Fierro, texto fundador da literatura argentina. Gabriela transforma a personagem coadjuvante do original em protagonista e a empurra em busca de experiências emancipadoras, em uma história que embaralha papéis e expectativas.

Essa é a tônica de vários dos livros da autora argentina, que insiste em personagens insubmissas. Na passagem pela Flip, em outubro, ao dar pistas de por que escreve quebrando padrões, também entregou um caminho para usarmos a posição periférica em que somos colocadas a nosso favor. “Para escrever, não estar no centro não é um problema. Esse é um ponto de vista mais livre. Quem está na periferia tem menos a proteger e mais a criar.” Eis a disrupção da literatura, quem está às margens pode inventar uma nova tradição.

A literatura é subversiva ao abrir passagem para universos em que refutamos a abnegação, a castidade e o cuidado unidirecional e aceitamos a horizontalidade, a mutualidade e a vontade. Narradoras e personagens que saem da lógica maternalista são inspiração para perceber quando contribuímos para preservar o lugar de cuidadoras insubstituíveis. Como um espelho, elas nos lembram da estrutura à qual convém responsabilizar unicamente as mulheres pelo cuidado, mas que por vezes também satisfazemos alguns anseios topando ficar ali. E o custo disso é altíssimo. Pra todo mundo.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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