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13 de janeiro de 2025

Maíra Cardi e as histórias de aborto que a gente conta

Enquanto polêmicas vendem na internet, a gente precisa lutar para fazer valer a Resolução 258 do Conanda, que protege crianças e adolescentes

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colagem digital mostra uma mulher negra segurando um celular e olhando fixamente para a tela, de onde saem flores, folhas e comprimidos
  • O coach e empresário, Thiago Nigro, postou nas redes sociais o aborto espontâneo de sua companheira Maíra Cardi, o que gerou debate sobre a exposição de temas íntimos, e provocou críticas quanto às possíveis intenções do casal;
  • O aborto continua sendo um tema tabu, com poucas informações sobre o tema, especialmente em relação ao aborto voluntário, que é criminalizado no Brasil, exceto em casos específicos;
  • A discussão sobre aborto deve ser pautada no respeito ao luto de quem vivencia perdas gestacionais e pela garantia do direito ao aborto seguro e legal, com mais acesso à saúde reprodutiva e a informações.

Todo mundo tem uma história de aborto pra contar (ou não contar), seja o seu próprio ou de alguém que conhece. Se a empresária influencer Maíra Cardi ainda não tinha, agora tem. Milhões de brasileiros e brasileiras acompanharam a sua gestação desejada, que infelizmente terminou em um aborto espontâneo. Tudo foi relatado em  sua conta no TikTok, que conta com 1,6 milhões de seguidores/as, e pelos inúmeros perfis de fofoca no Instagram

Para quem não conhece Maíra e sua família, um breve resumo: ex-BBB, ela alavancou sua carreira de coach de emagrecimento antes dos coaches virarem moda. Mesmo sem diploma na área, seu método de emagrecimento divulgado online viralizou e ela enriqueceu, especialmente por ter trabalhado com pessoas famosas como Anitta. Ela também foi esposa e tem uma filha de Arthur Aguiar, vencedor do BBB 2022, o que ampliou o seu público nas redes sociais. Agora, está casada com Thiago Nigro, conhecido como Primo Rico, um dos primeiros coaches financeiros a bombar na internet, com supostas fórmulas mágicas para enriquecer. 

Hoje, Nigro tem uma fortuna de mais de 20 milhões e juntamente com Maíra compartilham nas redes sociais suas rotinas e intimidades. Mais recentemente, expuseram o aborto espontâneo de Maira, o que gerou um debate interessante nas redes. Sabemos que o aborto é um desfecho comum de uma gravidez, seja provocado ou espontâneo. A estimativa é de que, no Brasil, 1 a cada 6 gestações termine em aborto espontâneo, sobretudo nas primeiras semanas. Além disso, 1 a cada 7 brasileiras afirma ter interrompido a gravidez de maneira intencional, conforme a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2021

Tabu e solidão para a maioria

Apesar de ser um acontecimento comum na vida reprodutiva, o tabu ainda é grande – até porque o aborto voluntário é criminalizado no Brasil. As exceções são os casos de gravidez decorrente de violência sexual, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia fetal. Pouco se fala sobre o tema, mesmo com pessoas próximas e de confiança, especialmente se for uma interrupção provocada da gestação. 

No geral, esse acaba sendo um processo solitário, permeado de estigmas e de falta de informação, até mesmo de quem trabalha com a assistência de pessoas gestantes. Não são raros os relatos de que um diagnóstico de morte fetal foi dado sem nenhum cuidado emocional, ou de mulheres que sofreram um aborto espontâneo e foram tratadas como criminosas ao buscarem cuidado em saúde. 

Mas é verdade que cada vez mais a sociedade fala sobre aborto e a partir de um lugar de direitos e de saúde. Um exemplo recente é o sucesso da campanha ‘Criança Não É Mãe’, articulada pelo movimento feminista, que fez a maior parte da população defender o direito ao aborto legal para vítimas de violência sexual (mesmo em idades gestacionais avançadas). A campanha impediu o avanço do PL1904 e da PEC164 no Congresso, desmoralizou parlamentares conservadores e fundamentalistas (a Bancada do Estupro), e levou a esquerda brasileira de volta às ruas. 

Polêmica vende mais

Mais recentemente, o movimento feminista atuou pela aprovação da Resolução 258/2024 pelo Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Mesmo diante da aliança entre o governo e (pasmem) setores fundamentalistas da política que seguem tentando barrar a Resolução, como a senadora Damares Alves (Republicanos) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Aliança antes impensável, é bom frisar. Mas o que mais importa nessa história toda é que o documento, que protege crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e organiza o acesso ao aborto legal, foi aprovado e publicado!

Leia mais: Série Lobby Antiaborto

Apesar disso, o aborto segue sendo um assunto polêmico e, como quase toda polêmica, vende muito. Ainda vende matéria sensacionalista na imprensa, anúncio falso de Cytotec por WhatsApp, e publicidade antiaborto nas plataformas da Meta. Só o Brasil Paralelo, por exemplo, investiu mais de 700 mil reais nesse tipo de anúncio no Instagram e no Facebook, em 2023, de acordo com pesquisa do NetLab

A maneira como o casal Cardi Nigro anunciou publicamente a perda gestacional mobilizou bastante as redes sociais. Maíra, que estava com 8 semanas de gestação, postou um vídeo do momento em que a médica anunciou que o feto não tinha mais batimentos cardíacos. Já Thiago postou, em seus stories do Instagram, um vídeo em que o embrião aparecia expelido no chão de casa, e ele dizendo que “já tinha bracinho, dedinho…

As intenções por trás

As críticas ao casal falaram mais alto do que o acolhimento – houve até quem dissesse que o aborto tinha sido provocado para gerar conteúdo e viralizar. Fato é que a exposição da intimidade do casal nas redes sociais é lucrativa. Enquanto eles invariavelmente aumentam seus ganhos com publicidade e monetização dos perfis, para nós, feministas, não é fácil assim participar dessa arena pública. Mesmo que nossa atuação consista sobretudo na divulgação de informações científicas e de saúde, de relatos e defesa de direitos humanos básicos.

O centro do julgamento virtual foi o vídeo do produto gestacional recém-expelido, sem nenhum tipo de censura ou aviso prévio. Os usuários da rede mundial de computadores também foram rápidos em apontar um suposto interesse do casal em reforçar suas crenças políticas e religiosas. O que fortaleceria discursos conservadores que humanizam ‘nascituros’ e colocam a vida de fetos e embriões acima da vida das pessoas gestantes. 

A contradição estaria no fato de que se fosse um filho nascido morto, ele não teria postado. Até porque, se nascituro fosse gente, Thiago teria cometido o crime de vilipêndio de cadáver. Eles são cristãos evangélicos recém-convertidos, e eu desconheço o posicionamento deles sobre descriminalização do aborto. No entanto, cristãos fundamentalistas são grandes ativistas contra o direito ao aborto em qualquer circunstância – inclusive nos casos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. 

Respeito ao luto e às escolhas

Em um momento com cada vez menos regulação das redes sociais e cada vez mais algoritmos misteriosos, esse tipo de conteúdo publicado pelo Primo Rico tem potencial de alimentar estigmas e desinformação. Dias depois, ambos se desculparam em suas redes sociais. Thiago disse que teve uma reação compreensível diante do luto parental e que não voltaria a falar desse assunto. 

De fato, queremos uma sociedade em que o luto parental seja respeitado, em que as pessoas tenham acesso a cuidados de saúde que as permitam continuar com gestações planejadas e desejadas. Queremos também uma sociedade em que o aborto voluntário seja respeitado como uma escolha, e que quem desejar abortar tenha condições reais de fazê-lo em segurança.

Eu não acho que o aborto deva ser um acontecimento exclusivamente privado. A história do aborto da cineasta Eliza Capai, mostrada no documentário “Incompatível com a Vida”, é essencial para dar luz ao sofrimento de mulheres que carregam fetos que não sobreviverão fora do útero, mas vivem no Brasil, onde quase nunca recebem atendimento digno. A repercussão do filme segue: em 2024, foi lançado o site incompativel.com.br, que ajuda gestantes com diagnóstico de malformação fetal incompatível com a vida a abortar legalmente. 

Leia mais: “Se você aborta é porque não tem condições de seguir”

O aborto é comum e deve ser legal 

O que temos visto são autoridades políticas insistindo em regredir e impedir a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, quase sempre com a desculpa de manter uma suposta governabilidade. E, do lado de cá, nós sempre nos desdobrando para resistir e avançar; para qualificar e posicionar esse debate nas esferas às quais ele pertence: de cuidado, de direitos, de dignidade. 

Contar histórias sobre aborto pode ser uma forma de tirar o tema do armário, ajudar a combater tabus e mentiras, assegurar direitos e combater violações. Todos os dias, cerca de 20 meninas dão à luz no Brasil. Foi contando as histórias de meninas como a do Espírito Santo, a de Santa Catarina e a de Goiás que elas conseguiram finalmente abortar legalmente. Infelizmente, muitas crianças brasileiras não têm essa mesma “sorte”. As meninas negras são as maiores vítimas de violência sexual e de morte no parto, já que a gestação é um risco à saúde delas, e seguimos sendo um país profundamente racista. 

Que todo o debate em torno do aborto do casal Cardi Nigro neste início de ano sirva, ao menos, para mostrar que o aborto é comum, que todo tipo de pessoa pode viver essa situação e deve ser respeitada. Afinal, é uma grande contradição vivermos em um país onde o acesso a esse tipo de informação é tão estigmatizado e restrito, e o acesso à saúde reprodutiva ainda é criminalizado. 

Leia mais: Quando o aborto encurta o luto e alivia o sofrimento
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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