Tinha 13 anos quando a vi pela primeira vez. Chegou sem muito aviso e não a reconheci. Não se parecia nada com os relatos das minhas amigas, nem com a descrição do livro de ciências ou com a cena da série de TV adolescente.
Era uma manhã meio fria nas férias de julho e eu estava sozinha em casa, quando me deparei com aquela mancha marrom acobreada na calcinha. A reação imediata foi de estranhamento. Era realmente uma mancha muito esquisita de algo líquido, mas texturizado, algo que não se parecia com nada conhecido. Numa fração de segundo, o espanto deu lugar ao medo. Ou melhor, ao pânico. “Deve ter algo extremamente errado comigo pra sair uma coisa dessas de dentro de mim, estou morrendo!”, pensei.
Então, subi a calcinha e a calça e saí correndo pela rua até encontrar minha mãe, que é arquiteta e estava trabalhando numa casa vizinha. Ela estava falando com os encarregados pela obra e ficou brava por eu tê-la interrompido bruscamente até conseguir arrastá-la de volta ao nosso banheiro, onde lhe mostrei minha suposta sentença de morte.
Pra minha total surpresa, minha mãe, que é a pessoa mais apavorada que conheço – depois de mim – em relação a urgências médicas, abriu um sorriso e disse:
– Bruna, você está menstruada!
– Ué! Mas não era pra ser algo parecido com sangue? Vermelho e tal…
– Nem sempre é vermelho, principalmente no começo, mas é normal!
Aquilo me parecia qualquer coisa, menos normal, mas tentei aceitar e fingir naturalidade, afinal, eu já era uma “mocinha”. Finalmente, tinha sido promovida na escala da pré-adolescência rumo ao tão almejado mundo adulto – e não iria mais ficar de fora do clube das meninas que levavam pochetes com absorventes pra escola e eram admiradas por aquelas que ainda não precisavam daquele misterioso artefato tão mulheril.
– E o que eu faço agora?
– Nada. Só coloca absorvente na calcinha enquanto o sangue estiver descendo e pronto. Às vezes, você pode sentir alguma dor, é cólica e também é normal.
Não senti nada e vários meses se passaram até que os sangramentos se tornassem mensais, apesar de continuarem com espaçamentos irregulares por alguns anos. Passada a fase de fofocas sobre quem já tinha “ficado mocinha” ou não, ninguém mais falava muito sobre o tema.
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Logo, a menstruação se tornou apenas um período chato em que eu tinha que lembrar de trocar adequadamente os absorventes pra não passar vergonha com uma roupa manchada e não podia entrar na piscina – a menos que usasse um absorvente interno, mas ninguém queria correr o risco de “perder a virgindade” praquele treco estranho que se comprava na farmácia, como nos amedrontavam as mais velhas! Além disso, cólicas eram um “super trunfo” pra se livras das aulas de Educação Física.
Um tempo depois, comecei a ter cólicas ocasionais e bastante TPM. Além disso, era só demonstrar um pouco de irritação pros meninos debocharem: “tá ‘naqueles dias’, né?”. Então passei a odiar ficar menstruada e lembro de praguejar com minhas amigas sobre como era difícil ser mulher e como a vida dos homens devia ser infinitamente mais fácil – e não estávamos erradas! Mas eventualmente percebemos que essa “facilidade” não tem nada a ver com a menstruação.
O grande momento de redenção do período menstrual na vida das jovens da minha geração chegava com o começo da vida sexual, quando qualquer assunto relacionado a transar ainda era um grande tabu e ninguém sabia se de fato estava fazendo tudo certo pra impedir uma gravidez. Então, qualquer sinal de sangue na calcinha era motivo de festa, e um dia de atraso se arrastava como uma eternidade em que dava tempo de imaginar toda a tragédia que se seguiria a um eventual teste positivo de farmácia – afinal, como bem definiu meu companheiro, um dos sinais do fim da juventude é o momento em que se passa a comemorar mais do que temer notícias de gravidez.
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Apesar de vibrar a cada muito bem-vinda menstruação, os ginecologistas a que fui – passei por vários até achar uma com quem me sentisse bem – acabaram me convencendo a tomar pílulas anticoncepcionais, por serem “o melhor método contraceptivo e ainda te livram da TPM e das cólicas”. Foram anos seguidos de inúmeras cartelas numeradas, alarmes perdidos e estresses por esquecer de tomar o tal comprimido “salvador da pátria” (notem que pátria vem de pai, não de mãe). Isso sem falar no custo financeiro e nas alterações de peso, inchaços, dores de cabeça e diminuição da libido.
Quando o jogo virou
Aí, apareceram as feministas no meio do caminho e eu dei a infinita sorte de escolher caminhar ao lado delas. A cada debate, conversa ou círculo de mulheres, eu me abria pra importância de conhecer melhor meu corpo pra criar minhas regras – e, vejam só, “regras” era como nossas avós chamavam a menstruação! Comecei a suspeitar que devia ter algo de muito poderoso na natureza cíclica das mulheres pro patriarcado capitalista querer tanto controlá-la. Resolvi assumir o risco de voltar a ter TPMs e cólicas, além de ter que lidar com a resistência dos homens a outros métodos contraceptivos – afinal, para as mulheres, a liberdade é sempre uma escolha arriscada, mas que costuma valer a pena.
Larguei a pílula, encomendei uma Mandala Lunar e um termômetro de precisão e parti numa jornada de autoconhecimento e conexão com a natureza, que logo descobri como um caminho sem volta. A Mandala é uma agenda com diagramas que sincronizam o calendário solar aos ciclos lunares. Neles, você marca a duração dos seus ciclos menstruais e como se sente em cada fase (pré-ovulatória, ovulação, pré-menstrual e menstruação). Você pode anotar o que achar relevante observar no momento, como mudanças de humor, estados emocionais ou sensações físicas. Com o passar dos meses, revisitar esses registros é uma ótima maneira de identificar padrões pessoais, que podem ser usados a seu favor na hora de fazer planos – você pode perceber que costuma se sentir melhor disposta na primeira semana do ciclo, por exemplo, e marcar uma viagem que coincida com esse período – ou simplesmente observados para autoconhecimento.
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O termômetro de precisão veio junto com um aplicativo, que usei para acompanhar meu período fértil, por meio da medição diária da temperatura basal. É como uma “tabelinha” tecnológica, com muita ciência por trás, que me ajudou a conhecer meu corpo ainda mais. (Nota da redação: há denúncias de que aplicativos de menstruação estejam compartilhando dados de usuárias com plataformas digitais para fins de publicidade e o assunto requer atenção)
O algoritmo do aplicativo dá mais segurança, mas também é possível prevenir ou planejar uma gravidez sozinha e de forma natural usando o método da observação da temperatura basal combinado à percepção do muco cervical, o que ficou conhecido como “método sintotérmico”. Fiquei completamente encantada ao observar a sincronicidade das mudanças ao longo dos meus ciclos, mas é importante dizer que esse método exige muita disciplina e que não é o mais indicado a qualquer uma e em qualquer fase da vida.
Mais do que saber quando estava fértil ou não, essa observação dos meus ciclos em vários níveis foi a porta de entrada pra um processo de cura, interno e profundo, da minha relação com a natureza feminina e com a vida. Aos poucos, fui percebendo como vários medos que me paralisavam estavam ligados a uma descrença nas capacidades e potencialidades do meu corpo. E que uma parcela dessa descrença estava contaminada pelo insistente e histórico rebaixamento da mulher como “o sexo frágil”. (Minha parte acadêmica só consegue pensar em Foucault e Butler, já que esse deve ser um belo exemplo de como o poder e a política se manifestam no corpo e de como nossos corpos carregam conteúdos significantes).
Esse processo de emancipação pessoal foi incrivelmente intensificado pela chegada da gravidez, toda a evolução da gestação, o parto e o puerpério. Mas antes disso, exatamente um ano antes de a Liz nascer, tive a maior crise de cólica da vida. Lembro bem, porque era dia 24 de dezembro e eu tinha ido ajudar minha mãe com os preparativos da ceia de Natal, quando me vi no chão, quase desmaiando de dor. No auge da crise, de dor e de ansiedade ao mesmo tempo, eu pensava: “quantas sensações horríveis se escondem no corpo? Vou perder o controle, vou morrer!”.
Naquele momento, tive uma epifania, senti como se tivesse saído do meu corpo e me olhasse de cima. Finalmente, (depois de aaaanos de terapia) consegui rebater aquele pensamento catastrófico: “calma, Bruna. É só o seu corpo. E daí se você perder o controle? Quem disse que você controla algo? No máximo, você vai desmaiar e vão te acudir. E mesmo que você morra, e daí? Não é algo que você pode controlar”.
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Então, simplesmente me entreguei às sensações. E mesmo não sendo nada agradáveis, a ansiedade foi passando e a dor arrefecendo. Logo, minha pressão voltou ao normal. Consegui levantar, tomei água, um analgésico e voltei à vida normal, real. Não sei bem explicar o porquê, mas essa experiência me transformou. Me dei conta de que, por mais difícil que seja lidar com a dor física, a realidade dessa sensação é muito menos pior do que a ideia que fazia dela. O sofrimento estava muito mais ligado a suposições distorcidas pela ansiedade do que à realidade e ao corpo.
É claro que, se continuasse tendo cólicas absurdas como aquela todo mês, iria investigar o motivo, porque provavelmente algo estaria errado. Não acho que, só porque somos fortes e capazes de aguentar as dores das cólicas e do parto, temos que suportá-las sempre, sem remédios ou anestesia. E não é porque somos mulheres e/ou feministas que temos que ser fortes, a questão é que é emancipador encontrar nossa força interna e perceber como ela vai muito além do que fomos condicionadas a acreditar. Isso, pra mim, foi transformador.
Poucos meses depois, descobri que estava grávida. Confesso que senti medo. Mas observar a perfeição com que se desenrolava todo o processo de mudança do meu corpo e a criação de um novo ser ao longo de meses me deixou absolutamente impressionada com a força da vida, da natureza e do meu corpo feminino. Quando cheguei ao tão temido parto, já estava tão confiante que nada parecia poder me abalar. Doeu sim, mas não sofri. Entendi na prática como dor e sofrimento são coisas diferentes. Aliás, o nascimento da Liz foi de longe o melhor e mais prazeroso dia da minha vida! (Infelizmente, não é assim para todas as mulheres, mas resgatar a potencia dos nossos corpos é um caminho para mudar essa realidade).
O puerpério foi um período de infinitas surpresas e descobertas sobre meu corpo – porque simplesmente nunca tinha ouvido falar quase nada sobre esse período. Uma delas, é que, quando se amamenta em livre demanda de forma prolongada, os hormônios da lactação inibem a fertilidade e, consequentemente, a menstruação. Muitas mulheres passam mais de um ano após o parto sem menstruar e isso é perfeitamente normal. Foi o meu caso.
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Até que, um dia, acordei com a estranha e familiar impressão de me sentir “eu mesma” depois de muito tempo. Era como se, durante a gestação e todo o primeiro ano de vida da minha filha, eu estivesse num estado de consciência diferente, em que minha mente e minhas emoções eram mais calmas e estáveis – apesar das inúmeras crises existenciais impulsionadas pelos hormônios e choques de realidade do início do puerpério e pela privação de sono inevitável ao cuidar de um bebê. Em alguns momentos, eu percebia essa “nuvem” que me envolvia e me trazia bem estar, mas que, ao mesmo tempo, inibia alguns impulsos tão característicos da minha personalidade.
Poucos dias depois desse insight, fui surpreendida por uma mancha de sangue na calcinha. Desta vez, não senti medo, mas alegria e acalanto, como se tivesse encontrado uma velha amiga que não via há muito tempo. Aquela amiga que te conhece tão bem, que te faz lembrar quem você é em momentos confusos – como é a transição pós-puerpério. Recebi sua chegada com gratidão e me recolhi para me reconectar comigo mesma. Afinal, depois de uma longa saga, menstruar se tornou sinônimo de voltar para casa.