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14 de dezembro de 2016

Olga Savary: pioneira da poesia erótica no Brasil – e mais

“Deito-me com quem é livre à beira dos abismos e estou perto do meu desejo"

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“Íntima da água eu sou por força,

mar, igarapé, rio ou açude,

pela água meu amor incestuoso.”

Sensorial, Olga Savary em Magma

N o começo dos anos 1980, a escritora Hilda Hilst recebia uma colega para um final de semana em sua Casa do Sol em Campinas, lugar onde morava e hospedava amigos das artes e das letras em busca de tranquilidade para concluir seus projetos. A hóspede em questão era Olga Savary, uma paraense radicada no Rio, que acabou estendendo a estadia por um mês inteiro e saiu de lá com um novo livro: Magma, lançado em 1982 e composto apenas por poemas eróticos.

Alguns sites citavam essa obra como o primeiro livro de poesia erótica publicado por uma mulher no Brasil.

A curiosidade foi suficiente para me fazer procurá-lo por todos os sebos que conhecia e encomendá-lo de outro estado. Enquanto o exemplar não chegava, continuei pesquisando sobre a autora e descobri que outra brasileira já havia lançado uma obra só com poemas eróticos em 1928: Meu glorioso pecado, de Gilka Machado – que ainda não fazia ideia de quem era. Isso não tirou nem um pouco a ansiedade de ler a Olga, apenas me fez ir atrás da obra da Gilka também (mas fica para um próximo post;).

Quando o livro finalmente chegou, minhas desconfianças sobre sua qualidade se confirmaram. Quase não consegui segurá-lo fechado, as páginas se abriam num fluxo de lava e me arrebataram de uma vez, como as águas selvagens que inspiram a poeta. Aqui vai uma amostra pra vocês verem do que estou falando:

“Deito-me com quem é livre à beira dos abismos

e estou perto do meu desejo.

 

Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,

dos lugares de água, dos regatos perdidos,

lá onde morremos de um vago êxtase,

de uma requintada barbárie estávamos morrendo,

lá onde meus pés estavam na água

e meu coração sob meus pés,

 

se seguisses minhas pegadas e ao êxtase me seguisses

até morrermos, uma tal morte seria digna de ser morrida.

 

Então morramos dessa breve morte lenta,

cadenciada, rude, dessa morte lúdica.”

Acomodação do desejo III, Olga Savary em Magma

Mana, que poema da boceta! Que maneira mais autêntica de descrever um orgasmo! Um gozo feminino, de uma mulher empoderada, dona do seu corpo, da sua vontade, do seu prazer. Tudo isso num lirismo elegante, forte e preciso. Um olhar necessário de uma mulher sobre o sexo e sobre a vida.

Nos poemas da Olga, o eu-lírico é sempre feminino, autônomo e se relaciona em pé de igualdade com os personagens masculinos. Aliás, as características historicamente relacionadas ao masculino e ao feminino são subvertidas a todo momento pela poeta.

Se o “macho” é retratado muitas vezes como uma “fera”, é também leve como a “espuma” e vulnerável à força feminina tão presente na obra.

Até no ato sexual, a mulher é quem conduz a ação e apropria-se dessa experiência para sua criação literária, como vemos neste poema:

“Diria que amor não posso

dar-te de nome, arredia

é o que chamas de posse

à obsessão que te mostra

ao vale das minhas coxas

e maior é o apetite

com que te morde as entranhas

este fruto que se abre

e ele sim é que te come,

que te como por inteiro

mesmo não sendo repasto

o fruto teu que degluto,

que de semente me serve

à poesia.”

Nome, Olga Savary em Magma

É, manas, imaginem como esta poeta feminista se sentiu ao ler esses versos pela primeira vez… Só por esse livro, a Olga já tinha me conquistado como leitora e admiradora, mas descobri que a obra dela é enorme e vai muito além da poesia – por que, raios, nunca tinha ouvido falar dela antes?

Uma vida dedicada às letras

Filha de pai russo e mãe paraense, Olga nasceu em 21 de maio de 1933 em Belém e viveu parte da infância em Fortaleza. Nos anos 1940, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde vive e trabalha como escritora, tradutora e jornalista até hoje. Sua produção literária começou ainda na infância, mas seu primeiro livro, Espelho Provisório, só foi publicado aos 37 anos de idade. Já em sua estreia, ganhou o Prêmio Jabuti de Autor Revelação de 1971.

Não é exagero dizer que a autora é uma das principais escritoras brasileiras vivas.

Reconhecida por mais de 40 prêmios literários nacionais e internacionais, publicou 16 livros de poesia e ficção próprios e participa de mais de 900 antologias como autora convidada ou organizadora – foi ela que organizou primeira antologia de poesia erótica brasileira, em 1984. Uma das pioneiras do haicai em português, traduziu alguns de seus maiores clássicos japoneses, como Bashô, Buson e Issa. Também foi tradutora de grandes expoentes da literatura latino-americana, como Neruda, Borges e Cortázar.

Apesar de ter se consolidado na tradução de línguas estrangeiras, Olga valoriza suas origens ao utilizar palavras do idioma tupi em suas criações, que vão de poemas a contos, ensaios e até conteúdos jornalísticos. Teve um casamento conturbado com o cartunista Jaguar, com quem participou da fundação do jornal O Pasquim, mas não recebeu o devido crédito por ser mulher, como contou à revista Marie Claire nesta entrevista.

Na ebulição da contracultura das décadas de 1970 e 1980, Olga não fazia parte de um movimento específico, mas estava inserida no cenário da literatura nacional por meio de seu trabalho como escritora e diretora do setor de Literatura da Casa do Estudante do Brasil. Também se relacionava com importantes nomes da época, como Carlos Drummond de Andrade, com quem manteve uma amizade próxima e de longa data – seu livro AltaOnda é dedicado a ele.

Em 2013, lançou o livro de haicais Natureza e ser pela independente Editora Patuá, com ilustrações de Noemï Flores. Hoje, aos 83 anos, continua produzindo e trabalhando de sua casa na capital carioca. Nunca se declarou feminista. Avessa à desinformação da internet, comunica-se com amigos e pesquisadores de sua obra por meio de cartas e telefonemas.

“Fartura de água,

te dás sempre inteira

telúrica e alada.”

Natureza, Olga Savary em Natureza e ser

 

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