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11 de setembro de 2024

O desespero para fazer um aborto a fez cair em um golpe

“Levei dois anos para enfrentar a dor do que aconteceu”

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Este conteúdo faz parte de uma série:

selo escrito "série de reportagens sobre o lobby antiaborto no Brasil"

A Revista AzMina está publicando toda quarta-feira conteúdos e reportagens investigativas da série especial sobre o Lobby Antiaborto no Brasil. Esse divã faz parte da série e busca mostrar os impactos humanos dessa frente ampla no país que desinforma e manipula para retroceder nos direitos reprodutivos. A criminalização e o grande estigma sobre aborto afetam drasticamente a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam. 

AzMina recebe esses relatos voluntários de pessoas que abortaram nos mais variados contextos e enfrentaram desafios em um país que restringe o acesso à saúde e ao aborto, inclusive nos casos em que a interrupção é prevista em lei (risco de morte materna, anencefalia do feto e gravidez resultante de estupro). Veja a seguir um desses depoimentos inéditos:

Colagem digital mostra uma mulher caindo em uma teia de aranha, com braços e pernas para cima. Ao fundo, ícones do whatsapp.

Começar a escrever um texto é sempre o mais difícil, principalmente quando se trata de um relato pessoal. Passei o dia pensando em como começaria: se de forma poética, positiva ou engraçada; então resolvi começar sendo sincera. Não sei o rumo que meus dedos e mente irão me levar até o final desse relato, já que se trata de um assunto que levei dois anos para conseguir partilhar. A única coisa que eu sei é para quem eu estou escrevendo: as mulheres. Mulheres que estão passando nesse exato momento ou já passaram pela mesma experiência que eu. 

Quando vivi todo o processo, a única coisa que eu conseguia pensar, era o quão solitário é passar por isso vivendo no Brasil, como se já não fosse difícil suficiente ser mulher. Vou dividir o meu relato em quatro partes: a descoberta, o momento vivido, pós-momento e conclusão final. 

A descoberta

Há dois anos me envolvi com um homem 25 anos mais velho que eu – naquela época eu tinha 24 anos – e ele, além de ser o meu chefe, era casado. O que já era ruim, ficou ainda pior. Após reparar em algumas mudanças em meu corpo, enjoos constantes, atraso menstrual, resolvi fazer o teste de gravidez, e deu positivo. 

O pânico e o desespero foram instalados em minha mente, e perguntas foram se formando: “e agora, o que eu vou fazer?”; “o que vai ser da minha vida?”; “como vou contar para ele?” Uma única resposta vinha em seguida: “eu não posso ter esse bebê”. 

Assista aqui: Lobby antiaborto: poderosos se articulam contra o aborto legal

Como eu iria ter um filho de um homem casado? Ele tinha uma condição de vida financeira extremamente boa, mas e eu? Às vezes mal me sobra dinheiro para um Ifood. Mas o principal era que eu estava longe de realizar os meus sonhos e projetos pessoais e como eu iria contar para o meu filho ou filha quem era o seu pai. Onde estaria minha maturidade para criar uma criança sem toxidades, sem estrutura financeira e psicológica? Eu me vi sem saída.  

O momento vivido

Eu não tinha muito tempo, o medo de dar errado, o medo de descobrirem, mentiras e faltas ao trabalho faziam parte da minha rotina. Eu e o “meu companheiro do momento” sofremos um golpe de R$700 nesse trajeto. Uma dica importante: não confiem em anúncios na internet e conversas por WhatsApp. Eu sei que o desespero te faz tentar de tudo, mas seja criteriosa. Porque não tem como reivindicar ou denunciar, e os golpistas sabem. 

Eu sei que não é um conselho muito justo, tendo em vista vários casos de mulheres sem nenhuma renda que fazem procedimentos precários e desumanos, com um final horrível. Moramos no Brasil, um país retrógrado, machista, preso em crenças religiosas limitantes. A mulher não pode escolher o que fazer com o próprio corpo e tem que viver nas sombras

Leia mais: Brasil tem uma morte a cada 28 internações por falha na tentativa de aborto

Eu sei que tive sorte, tive contato de mulheres incríveis, e conheci quem eu costumo chamar de “meu anjo”. Uma mulher incrível que me mostrou um mundo que eu não fazia ideia que existia, um mundo onde mulheres se ajudam, trazem alguma luz em meio àquela escuridão. Uma mulher que me acolheu em sua casa, que me deu suporte em todos os momentos possíveis, e sem cobrar 1 REAL. 

Muitos me deixaram de lado

Pessoas viraram as costas para mim, escutei frases como “eu não vou carregar esse fardo com você”, sofri tratamentos ruins e olhares de julgamento por médicas. Fui surpreendida por ter sido tratada com empatia e acolhimento por um médico. Nada é revelado, mas precauções devem ser tomadas e situações omitidas. 

No momento em que estava no processo, eu queria desistir. A culpa e o medo de morrer tomavam conta de mim. Como cheguei nessa situação? Será que Deus iria me perdoar? Depois de todo o processo ter sido “concluído”, eu tive que ficar em um hotel por alguns dias, sozinha… pois eu não tinha para onde ir, não podia ir para casa naquele estado e tinha que me recuperar. 

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Uma amiga que me ajudou na época, não tinha mais psicológico para estar tão presente, e o “companheiro” só podia auxiliar financeiramente e com ligações. O escuro do quarto de hotel na hora de dormir me apavorava, naquele momento eu era uma criança novamente e só queria um colo de mãe. 

Como eu ia olhar para as pessoas e para minha mãe? Mediante esses pensamentos, eu não queria sair do hotel, uma bolha havia se criado, ali o meu segredo estava guardado, não havia julgamentos alheios, apenas o meu próprio. Estendi o máximo que eu pude minha estadia, mas tive que retornar a realidade.  

Pós-momento

Criei um laço tóxico, dependente, com o parceiro. Por mais estranho que pareça, a relação se estendeu até alguns meses atrás, finalizada por mim. Eu não queria deixá-lo ir, porque ele era a única pessoa que podia carregar esse fardo comigo. Ele também não conseguia se desvincular de mim, então fizemos uma dupla tóxica e doentia. 

Comecei a frequentar terapia, mas guardei esse trauma em uma caixa de pandora em minha mente, e escondia a chave de mim mesma. Eu não tocava no assunto, era como se nada tivesse acontecido, mas a cicatriz estava exposta e os sintomas também. Depressão, crises de ansiedade, relacionamentos falhos. E a terapia? Eu só sabia falar do companheiro, e focava em problemas banais como “ele não liga para mim”. 

Só depois de dois anos, eu comecei, repito, comecei a trabalhar e a enfrentar melhor todo esse acontecimento. Sim, eu ainda estou no começo, e o primeiro passo que eu resolvi dar foi escrever esse relato.  

Conclusão final

Finalmente eu estou começando a acreditar e, em parte, entender, que essa culpa não é minha, e sim do que foi imposto pela sociedade. Essa é a minha história, meu corpo. Vejo tantos países avançando junto com a ciência e uma consciência justa, inteligente e racional. 

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Eu quero falar agora para as mulheres que venham a ter que passar por isso. Tenham em mente algumas coisas:  

Racionalidade pode soar um pouco seco e frio o que eu vou dizer, mas é a maior verdade: não é um bebê ainda, é um feto, não tem alma ainda (para quem tem suas crenças), ou consciência. Existem países que fazem esses procedimentos legalmente. Procure ler, pesquisar, se informar, a ciência explica muito, e nessas horas, o estudo te ajuda demais.  

Procure ajuda psicológica: mas sejam cautelosas, procurem um profissional que seja humano, que vai acolher. Façam terapia, mesmo que não seja para contar o que realmente está acontecendo.  

Você não é uma pessoa ruim: digo isso porque eu pensei isso de mim, me sentia um monstro. Uma vez, ao dizer isso para uma amiga, ela disse: “por que você está se sentindo um monstro por pensar em você e no seu futuro? Você teve liberdade de escolha!” Confesso que ainda carrego culpa, mas estou caminhando para fechar logo esse machucado. 

Você não está sozinha: existem várias mulheres, como eu, que passaram  ou estão passando pelo mesmo. Se você souber onde procurar ou tiver a sorte de encontrar um mundo onde pessoas estão tentando, e estão conseguindo, plantar em meio a uma terra ruim, vai ser melhor ainda.  

Vai passar: sua vida vai seguir e, se você quiser, vai chegar o momento certo para escolher ter um filho. O mais importante é poder escolher por você. O Deus verdadeiro é amor, compreensão, não faz julgamentos e é cheio de perdão. E, por favor, se caso for, se perdoe, não se julgue, se acolha e se ame, pois, o mundo já pesa demais.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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