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20 de junho de 2017

‘Ser escritora é um posicionamento político’

Nossa colunista, Bruna Escaleira, está lançando seu segundo livro de poesia. Aqui ela fala sobre seus projetos e dificuldades que enfrenta no mercado. E revela um poema inédito

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Dia 28 de junho de 2017, lá vou eu de novo. É semana que vem. Desde já, junto todas as minhas forças contra a timidez e a vontade de estar sempre atrás das câmeras, por trás dos textos, para o lançamento do meu segundo livro de poesia, algo a declarar.;’ (sem maiúsculas e com essa pontuação doida mesmo). Saio da posição de jornalista para a de autora, coloco-me no lugar das mulheres que entrevisto e sobre quem escrevo por aqui. Não é um movimento tão fácil quanto parece. Mas necessário. Porque não é uma questão de gênero textual. É um posicionamento político.

De que valeriam todos os versos e frases empoderadas que publicamos se tivessem ficado apenas nos caderninhos de cada escritora, trancados em suas gavetas escondidas do mundo? Este mundo que os recebe tão mal, não os valoriza e dificulta cada vez mais que continuemos publicando e escrevendo – seja por questões econômicas, sociais ou publicitárias. Mas que, paradoxalmente, precisa tanto da literatura, do seu poder de nos fazer reconhecer a nós mesmos no outro e conhecer a multiplicidade de vozes da humanidade a cada época. De nos entendermos.

Escrever, pra mim, sempre foi algo tão natural quanto respirar. Mas colocar-me na posição de escritora e reivindicar-me como autora foi um processo complexo que só se concretizou por conta desse aprendizado político. Ao compreender a importância da literatura enquanto cultura na vida das pessoas, tomei a consciência de que, para defendê-la, é preciso posicionar-se. Escrevo e publico porque tantas e tantos antes de mim escreveram e publicaram e para que tantas e tantos depois de nós sigam publicando e escrevendo. Por isso aceitei o convite da Nana Queiroz para falar sobre minha trajetória como autora na minha própria coluna.

 

“conselho

Um dia me perguntaram por que eu não comprava um caderno de escrever – “pra dar vazão à criatividade”. Que ajudava a visualizar rimas, fazer poema brotar. Respondi que poesia não acontece em caderno nem em rima. Caderno até serve de berço, mas não de parteiro, porque poesia só nasce de parto natural.”  (algo a declarar,;’, p. 109)

 

No princípio era o dia

Lembro como se fosse hoje. Um belo dia, eu devia ter uns seis anos de idade, minha mãe me presenteou com um diário. Um caderno pautado com um pequeno cadeado. E me deu as instruções: lá você pode contar sobre seus dias. Não sei por quê, mas aquilo me pareceu absolutamente importante. Como mal sabia juntar as sílabas, as primeiras páginas são cheias de desenhos tentando representar as atividades diárias e frases como: “Hoje acordei, assisti televisão, fui na natação”.

Com o passar dos anos, os textos foram evoluindo. Ganharam adjetivos, emoções, críticas, revoltas, desabafos e filosofias (tudo isso, é claro, intercalado por papeis de bala, ingressos de cinema, folhas secas e afins, como um bom diário de filme dos anos 1990). Assim como evoluiu minha percepção sobre o diário, que passou a ser meu confidente – sempre protegido por aquele seguríssimo cadeado de plástico. Mais anos se passaram e me dei conta de que, na verdade, aquele caderno era simplesmente minha testemunha. Algum registro da minha vida que poderia vir a vencer a morte.

“lusco‑fusco

Chamei e você veio – veio, foi, voltou e ficou. A luz estava acesa, quis apagar, mas você não queria. Ficou acesa então, talvez tenha sido esse o nosso erro. Foi tudo real demais. Estivéssemos no escuro, facilitaria o esquecimento, as memórias se embaçam quando fogem as cores. Os olhos se acostumam à meia‑luz e dá pra ver tudo, só que sem cores. Os contornos são o que importa para se orientar no espaço e no tempo, mas são as cores o preenchimento, aquilo que provoca a pausa, a momentânea sensação de completude. E as cores estavam conosco, todas elas. Só foram embora quando você também foi. Da próxima vez que vier de saída prevista e breve, apague a luz.” (algo a declarar,;’, p. 108)

Escrevemos porque não somos gatos”, não temos mais de uma vida, escrevi uma vez. Escrevemos para nos perpetuarmos de alguma maneira frente à inevitável finitude da matéria, já nos explicou a filosofia. Mas meus diários não servem apenas à posteridade – que provavelmente nem vai se interessar por tais banalidades – servem, antes, a mim, como material de autoconhecimento e reflexão. Adoro reler diários antigos e perceber como mudei ou como certas coisas permanecem com o passar do tempo.

Um livro é um diário sem cadeado

“Não sou o que escrevo aqui, sou quem escreve aqui. É certo que escrever é um tanto identificar-se, mas um tanto mais descobrir-se e tornar-se”.

Assim me declarei na apresentação do blog que nomeia o livro que lanço agora, algo a declarar.;’. Aquele blogspot foi minha primeira experiência de tornar públicos meus escritos, em 2007 – não os dos diários, mas poemas, contos, crônicas, tagarelices. Em 2012, quando parei pra pensar que, talvez, aquilo podia se transformar em livro, recebi um convite da Com-Arte Editora Laboratório pra publicar algo que sequer existia. Eles gostaram de um poema que tinha enviado à revista Originais Reprovados, leram meu blog e sugeriram a publicação.

Poema publicado na revista Originais Reprovados de 2011. Também está na página 33 do algo a declarar.;’.

Foram dias viajando em cadernos, folhas, arquivos, e-mails, guardanapos espalhados por gavetas e memórias pra garimpar algo que formasse um livro entre tantos escritos. Os mais infantis ficaram de lado e uma tormenta criativa dividiu os poemas escolhidos em cinco temas fluidos, encaixando um após o outro, até formar o livro com textos produzidos entre 2007 e 2012, sem qualquer ordem cronológica.

“semillas’

mergulho novamente nas brisas do Guadalquivir

em cujas margens nunca pisei

tenho saudades das cidades que desconheço

como o homem que observa a chuva

desde os princípios da humanidade

em busca de algo que a transcende

mas nunca consegue agarrá‑lo

no máximo, avista‑o, ao longe

e quando isso acontece, a poucos detetives destreinados

é como se mergulhassem num rio revelador

que esconde a nitidez de suas águas

e emergissem, em seguida, com algo fora de lugar

e um impulso próprio a seres como os escritores

 

então passam a propagar suas descobertas

escondidas em aliterações e relatos

que costumam passar despercebidos

mas, curiosamente, estimulam certos leitores

e mesmo sem passar‑lhes significados exatos

instigam‑lhes a suas próprias buscas

de cidades desconhecidas e torrentes chuvosas

ou qualquer mistério que não necessite revelação

apenas precise ser propagado

aos quatro ventos

como sementes”

(algo a declarar.;’ pp. 27-28)

Escrever é coletivo

Na mesma época, finalmente comecei a comentar com algumas amigas que gostava de fazer poesia e tivemos uma surpresa: quase todas nós escrevíamos, mas não mostrávamos nada pra ninguém. Decidimos pôr fim àquela muita vergonha descabida fazendo um sarau só entre nós. Foi um encontro transcendental! Descobrimos que, não só todas escrevíamos, como estávamos numa fase em que falávamos de temas comuns, ligados ao corpo, à sexualidade e à experiência de ser mulher nesta sociedade. Assim começava uma das experiências mais revolucionárias que já vivi: o Circular de Poesia Livre (CPL).

Ilustração minha para trecho do poema entranhamento, do livro homônimo.

Sempre que podíamos, nos encontrávamos pra nos ler, conversar, trocar experiências e versos, dissolver angústias pela criação artística. Tornamo-nos leitoras umas das outras, nos influenciamos, crescemos juntas. Logo percebemos que aquela semente não podia mais crescer escondida, precisava tomar as ruas, as praças, tornar-se potência de mudança nas vidas de outras mulheres como nós. Inscrevemos o Sarau das Mulheres Livres em diversos festivais públicos e gratuitos e começamos a espalhar a literatura feita por mulheres como um exercício de liberdade.

A poesia ecoada na praça se expande, nunca volta a ser a mesma. A interação com o público é transformadora. O encontro de si mesmo no outro é revolucionário e emancipador. Vivi esse momento de libertação tão intensamente que logo me vi com um novo livro no colo. Através dessas amigas, conheci o Eduardo Lacerda, criador da Editora Patuá, um projeto lindo que busca publicar autores iniciantes de forma independente. Foi assim que o entranhamento saiu em 2014, furando a fila na frente do algo a declarar.;’.

De lá pra cá, muita água rolou. O blog foi engolido pela rede, mas deu lugar a uma página no Facebook. Os estudos iniciados no CPL passaram por uma pós-graduação e continuam no mestrado. A edição jornalística variada tornou-se escrita sobre literatura pra esta revista incrível. A poesia continua sendo liberdade e ocupando infinitos caderninhos. Literatura virou substantivo coletivo. E a emancipação virou ação.

miradouro

 

parece impossível deixar

de ser criança por dentro

ando pelo mundo impostora

em cheques sapatos discursos

pedidos empregos e ordens

desabam se não encontro

meu ursinho de dormir

– ainda que seja um homem

menino também disfarçado

 

o único lugar que domino

exploro com maturidade nata

no conforto da autoconfiança

é um território sem reis

o infinito planalto sem leis da poesia

 

onde alguns garotos traquinas

insurgentes desvairadas meninas

empoleram-se pra ver o mundo”

(Bruna Escaleira, inédito)

Foto: Arquivo pessoal

**Se você é uma escritora ou tem alguma sugestão de autora para apresentarmos, envie e-mail para bruna.escaleira@azmina.com.br e nos conte tudo 😉

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