logo AzMina
mulher branca, cabelos longos cacheados e castanhos, camisa branca de gola alta e manga comprida
2 de setembro de 2024

O que a reprodução assistida nos ensina sobre o aborto

Reflexões sobre Freud, “úteros ambulantes”, embriões descartados e tubos de ensaio

Nós fazemos parte do Trust Project

Uma mão segura uma pinça, como as usadas em laboratórios de reprodução assistida, e ergue uma mulher pelos pés, deixando ela de cabeça para baixo

O que a medicina reprodutiva, as aspirações de Freud, a legislação brasileira, o Conselho Federal de Medicina e as obras distópicas “Admirável mundo novo” e “O conto da Aia” têm em comum? Elas nos fazem refletir sobre os debates a respeito do aborto atualmente. Mas vamos por partes.

No final do século 19, Freud descobriu que a repressão da sexualidade estava na causa das neuroses, originadas do conflito entre os desejos e suas impossibilidades. Embora afetasse igualmente homens e mulheres, a descoberta de suas raízes foi feita através do corpo feminino. 

O criador da psicanálise localizou na mulher que sofria de histeria (manifestada, sobretudo, por sintomas corporais) o padecimento pela sexualidade reprimida. Ele percebeu que as tentativas de adequar as mulheres à vida doméstica, à maternidade adoeciam as mulheres. Como hoje, nem todas desejavam isso.

Nesse momento, Freud imaginou que seria um grande feito para os humanos se fosse possível transformar o ato da procriação em uma atividade estritamente intencional. Ele acreditava que ao separar a sexualidade da reprodução a saúde das pessoas seria preservada. 

Apenas 50 anos depois, a invenção da pílula anticoncepcional finalmente isentou as mulheres dos constrangimentos da procriação, concedendo-lhes autonomia para desfrutar da liberação sexual imaginada por Freud. O que ele não imaginou é que a invenção de um método contraceptivo não bastaria para livrar da repressão o já cativo corpo feminino.

O corpo da mulher segue sendo campo de batalha entre conservadores e progressistas, teocráticos e seculares, autoritários e democráticos. 

Da Psicanálise à Câmara dos Deputados

Em junho de 2024, para cumprir um acordo com a bancada evangélica, que lhe prometeu apoio na reeleição, o presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira (PP-AL), aprovou a urgência da tramitação do PL 1904, um projeto de lei que equipara a interrupção da gravidez após a 22ª semana ao homicídio, mesmo nos casos permitidos por lei (risco de morte materna, feto anencéfalo e gravidez fruto de estupro). 

Leia mais: Em 2023, 39 propostas prepararam terreno para PL que equipara aborto a homicídio

A proposta é claramente obscena. Beira a inconstitucionalidade, já que a constituição vigente não especifica um prazo para o acesso ao aborto justamente porque considera que isso seria um elemento limitador do direito assegurado. 

Em agosto deste ano, uma menina de 13 anos, estuprada, por pouco não teve seu direito ao aborto negado depois do pai tentar ao máximo o impedimento da sua realização, no intuito de que o feto viesse a termo. O pedido foi negado desde a 18ª semana de gravidez, só sendo autorizado judicialmente na 28ª, e com essa idade gestacional é necessária a realização do procedimento de assistolia fetal para a completa intervenção. Ou seja, nesse caso, a proposta do PL 1904 impediria a garantia do direito. 

O projeto também não considera que a maioria dos casos de gestantes que tenta acessar o procedimento com 22 semanas é de meninas de até 13 anos, ou seja, crianças. Assim, se ainda for aprovado, o projeto condenará meninas e mulheres a terem um filho do estuprador. Caso se neguem e tentem a realização do procedimento, correm o risco de serem presas com uma pena maior do que a do criminoso. 

É espantoso constatar como o sexo masculino legisla sobre o corpo feminino a partir de suas próprias ambições. Foi colocado em pauta e votado às pressas com o intuito de ser, nas palavras do autor do projeto, “um teste para o [presidente] Lula”, pois se aprovado pelo Congresso e vetado pelo presidente, jogaria o eleitorado evangélico contra o chefe do executivo. 

O tema do aborto continua alimentando o pânico moral das camadas mais conservadoras da sociedade brasileira, que não são capazes de reconhecê-lo como um problema de saúde pública urgente.

A família tradicional quer procriar

Temos em junho de 2024 o cenário (não mais) distópico de “O conto da Aia”, aclamado livro da canadense Margareth Atwood, no qual em uma sociedade teocrática as mulheres têm todos os direitos suprimidos e uma única função: procriar. “Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes”, afirma uma das personagens. 

No Brasil, assistimos ao movimento crescente das pautas conservadoras e reacionárias, sobretudo na última década. Esse movimento defende valores que são considerados sagrados, sendo a família tradicional um dos mais fortes.  

A transformação gradativa das resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a regulação das técnicas de reprodução assistida, sobretudo no que diz respeito ao estatuto do embrião, é exemplar de como a ofensiva conservadora tem se entranhado nos poros do nosso tecido social.

Entre a religião e o mercado

De acordo com a Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida (REDLARA), o Brasil concentra 40% de todos os centros de reprodução assistida da América Latina e lidera o ranking de fertilização in vitro (FIV), inseminação artificial e transferência de embriões. A fertilização in vitro, em nosso país, é a principal técnica de reprodução assistida. 

Nessa técnica, um óvulo e um espermatozoide são unidos de maneira artificial – extra corporalmente – com a finalidade de originar um embrião que posteriormente será implantado no útero de uma pessoa. Para que a probabilidade de gravidez seja maior, mais de um embrião é produzido e implantado. Porém, como essa aposta potencializa as chances de gestações múltiplas, aumentando o risco de mortalidade e de complicações nos bebês nascidos, há um limite de implantação de embriões por ciclo de FIV. Dessa equação, resulta os chamados “embriões excedentes” – embriões viáveis que não chegam a ser implantados no útero.

Nos últimos 14 anos, devido à falta de leis referentes à reprodução assistida no Brasil, tem ficado a cargo do Conselho Federal de Medicina (CFM) as resoluções que orientam as práticas vigentes sobre o destino dos embriões supranumerários. Assim, segundo a vontade dos proprietários e alinhada às diretrizes do CFM, seu destino pode ser a: a criopreservação (congelamento), a doação para outros casais, a doação para uso em pesquisa de células-tronco ou o descarte.

Vejamos quais foram as modificações nas resoluções do CFM, a partir de 2010, que dizem respeito às práticas com os embriões:

– Até 2010 vigorava a proibição do descarte de embriões excedentes (CFM 1358/1992).

– Em 2010, nova resolução permite o descarte apenas de embriões excedentes inviáveis, sendo os excedentes viáveis criopreservados (CFM 1597/2010).

– Em 2013, outra resolução permite o descarte, por vontade de seus proprietários, de embriões excedentes viáveis criopreservados há 5 anos ou mais (CFM 2013/2013).

– Em 2017, nova resolução permite o descarte, por vontade de seus proprietários, dos embriões congelados com três anos ou mais, assim como os abandonados nas clínicas (CFM 2168/2017).

Chama atenção, nas resoluções acima, que o prazo mínimo para que os embriões permaneçam congelados, antes do descarte, foi reduzido de 5 para 3 anos. Assim como a criação do conceito de “embrião abandonado”, que permitiu o descarte por iniciativa da clínica de fertilização. Portanto, observamos nas últimas resoluções uma crescente flexibilização para as regras do descarte.

No entanto, a resolução seguinte do Conselho Federal de Medicina dá uma guinada:

– Em 2021, nova resolução limita a 8 o número de embriões gerados, e o descarte, por vontade de seus proprietários ou abandono, passa a necessitar de autorização judicial (CFM 2294/2021).

– Em 2022, outra resolução acaba com o limite máximo de embriões gerados [já que esse ponto havia sido bastante criticado por dificultar o tratamento] (CFM 2320/2022).

As distopias do mundo novo

O vazio legislativo referente à reprodução assistida no Brasil abre brechas para que as diretrizes do Conselho Federal de Medicina reflitam padrões de cunho moral. 

Em relação às práticas com os embriões, é notória a guinada antidireitos ocorrida no governo Bolsonaro, auge dos movimentos conservadores e sobretudo reacionários. Mesmo fora do corpo, o embrião passou a ser tratado como protopessoa, de forma a preservar seu suposto valor de promessa de vida

Leia mais: Debate sobre aborto na Câmara é dominado por fundamentalismo religioso

Mas, como mostra a resolução de 2022, o mercado não se curva facilmente às regras que tentam limitá-lo, e reage provocando fissuras mesmo no ambiente mais rígido. É importante notar que o setor de medicina reprodutiva no Brasil é promissor e estima-se um crescimento médio de 23% ao ano até 2026, o que irá movimentar mais de R$ 3 bilhões

Só entre 2020 e 2023, o Brasil registrou 417.817 embriões criopreservados, de acordo com as informações do SisEmbrio (Sistema Nacional de Produção de Embriões), integrante da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Seriam meio milhão de vidas em suspenso, esperando dentro de freezers o sopro divino da vida? 

As novas resoluções do CFM enrijecem as regras para o descarte dos embriões por considerá-los invioláveis. Mas eles seguem sendo produzidos em escala industrial, pois o excedente é necessário para que a promessa de gravidez seja cumprida nos infindáveis ciclos de fertilização in vitro

O cálculo dos deuses é ardiloso. E o mercado não joga para perder. A propósito, um cenário que remete à obra de Aldous Huxley, “Admirável Mundo Novo”, no qual uma organização social é dividida por castas e tem seu principal alicerce na reprodução via ectogênese, isto é, na técnica de gestação do ser humano em úteros artificiais desde a fecundação até o nascimento. Estaríamos vivendo quantas distopias?

Quando o sagrado é flexibilizado

Para atender às demandas do discurso liberal – que alimenta cada vez mais a relação entre mercado, sexualidade e reprodução – o sagrado pode ser flexibilizado, fazendo com que um amontoado de células dentro de um tubo de ensaio possa ser congelado ad aeternum ou descartado legalmente. 

Enquanto isso, o mesmíssimo amontoado no útero de uma mulher ganha ares de sacralidade e legitima a criminalização de quem decide descartá-lo. O que é sagrado afinal? A vida, a promessa de vida ou a promessa dentro do corpo feminino?

Há mais de um século, Freud imaginou que, se a sexualidade pudesse ser separada da reprodução, os seres humanos, absolvidos do jugo da natureza, teriam liberdade para viver o exercício dela. A ciência presenteou-nos com essa possibilidade e, generosa, ainda nos ofertou poder isolar a reprodução da sexualidade – já que com avanço das novas tecnologias reprodutivas o evento da procriação pode dispensar o ato sexual – dando-nos assim ainda mais autonomia. 

Dessa forma, a procriação, agora independente da arbitrariedade da natureza, tornou-se um ato deliberadamente programado, orientado pelo tempo e expectativas individuais. Por vezes, um evento produzido mecanicamente no ambiente asséptico de um laboratório, mediante quantia significativa de dinheiro. 

Leia mais: Estariam nossos ovários defeituosos?

Apesar da nova realidade, a liberdade conquistada desaparece quando o que está em cena é o corpo feminino. Os avanços da ciência – supostamente neutra – retrocedem à autoridade do sacro e aos imperativos do natural. Sob o comando do masculino, a sacralidade e a natureza seguem ditando suas regras à revelia do reconhecimento de que a mulher, longe de ser essa balela de receptáculo sagrado da vida, é um indivíduo portador de direitos. Esse, sim, imperativo sagrado e inalienável.

*Este artigo contou com a seguinte referência:

PERELSON, Simone – Psicanálise e medicina da reprodução: notas sobre três tempos na história desse encontro. In: BIRMAN, J.; FORTES, I. & PERELSON, S. (orgs.). Um novo lance de dados: psicanálise e medicina na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2010.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE