Não é de hoje que a ficção e a teoria acadêmica tentam imaginar o impacto das tecnologias na política, trabalho, produção artística, relacionamentos sexuais/afetivos e na produção das subjetividades. Essas expectativas tendem a se dividir em dois polos. De um lado, um otimismo fundado em ‘vários nadas’, que nos diz que no futuro viveremos mais e melhor, como se os recursos naturais não fossem limitados, e a renda, concentradíssima. Do outro lado, o terror do futuro próximo: daqui a pouco as tecnologias evoluirão a ponto de ampliarmos infinitamente o espetáculo punitivo, determinarão os rumos da política e dos relacionamentos pessoais e, pior, trabalharemos o tempo todo.
Nos primórdios da industrialização, a tecnologia não foi identificada como algo que tornaria a vida mais fácil e tranquila – a menos que você fosse um proprietário. Usurpados de todos os meios para prover sua subsistência, os trabalhadores tiveram que inventar formas de resistir. Pararam a produção com as greves e com a destruição do maquinário usado para aniquilar vidas.
É mais ou menos nessa tradição que o Feminismo Glitch (Editora Âyiné) se insere. Por meio de diversas estratégias de sabotagem, a curadora de arte e escritora nova-iorquina Legacy Russell desvia do pessimismo “black mirror”, sem cair num otimismo deslumbrado de palestrante de evento de novas tendências do mundo digital.
A falha (glitch em inglês) é um componente do sistema, gerado involuntariamente. A proposta é abraçar as falhas deste mundo regulado pela hetero e cisnormatividade, fazer delas uma estética da existência e transformar politicamente o mundo off-line. Em outras palavras, o que a autora sugere é que a criatividade para criar os avatares on-line é algo que não serve apenas para a construção das identidades pessoais, mas para construir comunidades e se organizar politicamente também fora do ambiente virtual.
Corpos em glitch
Legacy não apresenta nenhuma novidade, mas recupera pontos de discussão importantes, que se contrapõem à crescente captura das pautas pelo feminismo publicitário e pelo individualismo neoliberal. Isso torna a leitura de seu manifesto muito oportuna.
Nos primeiros capítulos, antes de sermos introduzidas ao feminismo glitch propriamente, é feita uma contextualização a partir do ciberfeminismo, especialmente do Manifesto Ciborgue, clássico da teórica feminista Donna Haraway. Também estão lá contribuições de feministas negras sobre interseccionalidade e do teórico transfeminista Paul B. Preciado.
Retomando a discussão das potencialidades transformadoras do digital, somos lembradas que, mesmo numa configuração utópica, o espaço digital teria se constituído como branco e ocidental, deixando à margem pessoas queer, trans e racializadas. Assim, a primeira tarefa do feminismo glitch seria recusar a construção do corpo de acordo com a tradição feminista branca, cisgênera e heterormativa.
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Mais do que a denúncia das opressões, os espaços on-line permitiriam às pessoas que não cabem nas caixas da norma, produzir suas subjetividades transcendentes, dentro e fora das telas. “A Internet é um quarto só seu”, diz Legacy em referência ao clássico de Virginia Woolf.
Deixar tudo em curto circuito
Legacy usa como exemplo uma série de artistas e obras contemporâneas cujo trabalho tem a ver com essa ruptura. Não se trata de uma busca por representatividade ou inclusão, que podem ser capturadas pelo capital, mas de fazer a máquina entrar em curto-circuito. Produzir falhas propositais que criam novas identidades recusando o binarismo de gênero, os mapeamentos cibernéticos e a captura capitalista.
Na contramão do otimismo exagerado e da superexposição cibernética a que somos convidadas constantemente, o glitch propõe a criptografia – não se deixar “ler” tão facilmente. Afinal, “todo conceito de visibilidade pressupõe que você não está num sistema que o quer morto”.
“Corpos em glitch representam uma ameaça muito real à ordem social: criptografados e ilegíveis dentro de uma visão de mundo estritamente generificada, eles resistem à programação normativa”, diz Legacy. Ciente de que a supremacia não renunciará ao seu espaço, a proposta é tornar as mensagens visíveis apenas para quem tem autorização de decifrá-las.
Racismo algorítmico e monitoramento de ativistas
Feminismo Glitch traz uma discussão pertinente não só ao feminismo, mas também ao racismo algorítmico e ao monitoramento de ativistas. Com isso, há uma reflexão ampliada sobre cultura de segurança – algo que tem caído no esquecimento em tempos de monetização dos movimentos sociais e empreendedorismo ativista.
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A função do glitch não é gerar lucro; é ser um vírus. Algo que paralisa as atividades, faz funcionar errado, que gera danos à produtividade, que ataca seu funcionamento. Recusando a retórica da inclusão – “não vamos esperar que este mundo nos ame, nos compreenda, nos dê espaço” -, o feminismo glitch propõe criar mundos novos e coletivos. “Trabalhamos em conjunto para criar passagens seguras on-line e off-line por onde viajar, conspirar e colaborar”, escreve Legacy.
A escritora nova-iorquina adverte que nem toda ruptura radical proposta pelo glitch pode ser feita na internet. Contudo, a força das vivências virtuais ajudará a construir novos mundos longe das telas. O meio digital é um espaço possível de conexões e experimentações livres da colonialidade. E é também o da articulação das coletividades. Esse lembrete, de que política é feita na coletividade, já vale a leitura para saber mais sobre o feminismo glitch.