O mês que termina hoje (30) marcou os 10 anos das Jornadas de Junho, e a disputa pela memória das manifestações. A interpretação governista dos eventos de 2013 é de que o movimento contra o aumento das passagens causou uma espécie de “efeito borboleta”, que teria jogado o país nos braços do fascismo. Mas há quem defenda que esse foi um momento de insurgência popular, cuja memória precisa ser preservada.
Considero a ótica governista problemática, porque envolve uma visão simplista dos processos históricos e políticos, para no final nos dar um resultado meio óbvio: a única política possível é a partidária. Qualquer ação autônoma teria o risco potencial de fortalecer a extrema-direita e, por isso, deve ser evitada.
Produzir outra memória narrativa requer apresentar ângulos alternativos de observação desses eventos. Vamos olhar para as jornadas de junho com um recorte de gênero: há uma longa tradição de agência das mulheres na política do Brasil – que não está restrita a instituições, partidos e governos.
Faces das jornadas
Dentre as muitas mulheres, a maioria jovens, que estiveram nos protestos de 2013, duas pessoas vêm à mente por terem sido colocadas pela imprensa como símbolos das jornadas de junho: Mayara Vivian, em São Paulo, e Elisa Quadros, do Rio de Janeiro.
Por causa das entrevistas que concedeu à época com outros membros do Movimento Passe Livre (MPL), Mayara acabou identificada como uma das porta-vozes do grupo. Ela sempre frisou o caráter horizontal, não-partidário e anticapitalista do movimento, marcando que se tratava de uma reivindicação pela mobilidade urbana, mirando a gratuidade no transporte público.
Em entrevista recente ao portal G1 por ocasião do aniversário das jornadas, a ativista considera que o MPL cumpriu sua pauta: baixar a tarifa e, em seguida, o passe livre estudantil para alunos da rede pública em São Paulo. Dez anos depois, 67 cidades brasileiras possuem passe livre. Mayara rechaça a interpretação que atrela a ascensão da direita aos atos daquele ano: “Teve uma ascensão do nazifascismo no mundo inteiro e não foi o Passe Livre que inventou isso”, afirmou ao G1.
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Elisa ficou conhecida por ser presa com mais 22 ativistas, sob a acusação de planejar atos violentos, e por uma foto que circulou muito naquele junho. Na imagem, ela abraçava seu companheiro, o também ativista Luiz Rendeiro, de dentro de um ônibus a caminho de ser detida pela polícia. Rendeiro cometeu suicídio no começo deste ano.
Em uma reportagem da Ponte Jornalismo, em 2018, Eliza diz que foi usada como personagem pela imprensa, que projetou uma imagem de líder que não existia e colou nela o rótulo de baderneira. Ela contou sobre a prisão e a perseguição que a levou a se mudar três vezes. Contudo, aponta as jornadas como divisor de águas no modo de fazer política no Brasil, afirmando que, “sim, valeu a pena”.
O buquê de Espertirina
Criada em uma família de anarquistas de Lajeado (RS), Espertirina Martins é a mulher que inspirou um grafite famoso do artista inglês Banksy. A obra mostra uma pessoa vestida como um adepto da tática black bloc atirando um buquê.
Anarquista, Espertirina participou das greves dos operários nos Rio Grande do Sul em 1917. Quando um manifestante foi morto, ela compareceu ao enterro levando consigo um buquê de flores. Dentro dele havia uma bomba. O artefato foi atirado contra a Brigada Militar, que se preparava para reprimir o cortejo fúnebre. A ação facilitou a fuga dos operários, que mais tarde sairiam vencedores da greve.
Antes que existisse no Brasil um movimento de reivindicação dos direitos de participação política das mulheres, elas já participavam da política. Em São Paulo, no mesmo ano em que Espertirina Martins atirava seu buquê, Tereza Fabri e Teresa Carini escreveram um manifesto convocando as costureiras para aderirem a uma greve por redução na jornada de trabalho.
No Rio de Janeiro, Elvira Boni fez parte do sindicalismo revolucionário que reunia costureiras, bordadeiras, chapeleiras e ajudantes em ateliês de costura. Elas realizaram paralisações ao lado de mulheres negras, normalmente invisibilizadas na historiografia do movimento operário brasileiro.
O legado das mulheres negras
A participação política de mulheres negras é, inclusive, anterior à República. Estava nas revoltas de resistência contra a escravidão, na construção dos quilombos, nas coletividades dos terreiros, nos movimentos abolicionistas, na luta antimanicomial, pelo desencarceramento e na denúncia contra a violência policial. Como se vários buquês de Espertirina tivessem sido lançados pelos ares, espalhando sementes de revolta que germinaram pelo tempo e espaço.
Mulheres resistiram à ditadura militar, nas passeatas do movimento estudantil, na luta armada, nas guerrilhas no campo. No movimento feminino pela anistia, nas greves do ABC, na campanha pelas Diretas Já. Fizeram política enquanto cuidavam dos seus, alfabetizavam operários, ajudaram a esconder os fugitivos e participaram ativamente da história do Brasil e do mundo.
Alianças para além dos partidos
Abordar gênero nas jornadas de junho pede que olhemos o legado das mulheres, a continuidade das lutas, como as ocupações dos estudantes secundaristas e a mobilização contra a eleição de Bolsonaro – o movimento #EleNão. Diferentes entre si, esses eventos indicam que a herança de junho de 2013 não se resumiu à política partidária, mas renovou a imaginação política e a capacidade de mobilização.
As ocupações das escolas, marcadas por imagens de adolescentes corajosas diante de pelotões policiais, mostram como a nova geração não está disposta a delegar a resolução de suas questões à política representativa. Ao ser contrariada, a institucionalidade não hesita em usar a violência, mesmo que o “perigo” seja um grupo de adolescentes querendo estudar.
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A campanha #EleNão mostrou que podemos formar alianças suprapartidárias pontuais visando objetivos comuns, no lugar das longas e pouco confiáveis relações partidárias. Ainda que nem sempre bem sucedida em seu objetivo final – derrotar a candidatura do inominável -, ela mostra a capacidade de mobilização das mulheres para além dos partidos. Talvez, por isso, tenha sido mal-interpretada por quem chama tudo o que não compreende de pós-moderno ou identitário.
Dez anos depois de junho de 2013, o legado para a população é o passe livre em mais de 60 cidades brasileiras, chegando agora à na cidade de São Paulo, e mais perto em todo o Brasil. Há ainda o fortalecimento das mulheres, os movimentos negros, LGBTQIA+, de indígenas mais empoderados como agentes da transformação social. Valeu a pena, sim. Que venham outros junhos e jornadas. Nós estaremos aqui, prontas para acender as fogueiras.