logo AzMina
1 de agosto de 2023

A Barbie tá diferente (O mundo também)

Ícone da volta do grande público ao cinema, filme de Greta Gerwig faz divertido acerto de contas com o passado e dá pistas para o futuro

Nós fazemos parte do Trust Project

Montagem nas cores azul, roxo, lilás, rosa e cinza. Em frente a um céu colorido e um campo florido, uma mão segura quatro bonecas. As duas à esquerda estão vestidas com roupas icônicas da Xuxa, e uma delas até toca um saxofone. As duas à direita estão vestidas de Barbie.

Sendo muito sincera: eu não iria ver o filme da Barbie. Ou iria, quando chegasse aos serviços de streaming, como fiz com Cruella, outro live action que me atraiu pela estética e pela atriz, mas não o suficiente para ir até o cinema e pagar o ingresso, que está cada dia mais inacessível. Mas eu sou uma criatura da internet, e tudo que gera debates e memes atrai minha atenção.

Então, quando vi já estava com as unhas pintadas de rosa choque e glitter, pronta para comentar aquele que tem sido apontado como o acontecimento cinematográfico do ano. Além do marketing muito bem-sucedido e a mídia espontânea dos memes e filtros do Instagram, Barbie já entraria para história por levar o grande público de volta aos cinemas após a pandemia. 

O sucesso de Barbie transcende o audiovisual por todos os debates que mobilizou antes e depois do lançamento. Tenho que dar o braço a torcer: fui acometida por um certo ranço do “monte seu look pro filme da Barbie”. Depois, fui totalmente seduzida pela ideia, pensando que num mundo em recomposição, cabem tanto o excesso de cor-de-rosa, quanto o acerto de contas com o passado, fundamental para as possibilidades de futuro.

De símbolo da direita à musa sindicalista

O que colocou Barbie no meu radar foram os memes e o discurso de ódio. Problematizações de sempre sobre como Barbie representava um padrão de beleza irreal e excludente, sobre um mundo cor-de-rosa que representa uma cultura consumista e alienada, já estavam aí. Mas o que de fato chamou a minha atenção foi a transição de ícone da futilidade para símbolo de autonomia e empoderamento. 

Um dos sintomas dos nossos tempos – o das redes sociais – é que as opiniões são muito incisivas e definitivas, tendendo a tirar de um produto toda a sua leveza e complexidade. Não admitimos que um filme sobre uma boneca seja apenas um entretenimento inteligente. Ele precisa ser um petardo feminista, uma obra revolucionária e destruidora de paradigmas. 

Barbie não pode ser só uma boneca cujo fabricante se adaptou para atender às novas expectativas do mercado de consumo. Ou ela é um símbolo da alienação – o meme da Barbie Fascista, da eleição de 2018 – ou tem todas as profissões do mundo e por isso faz parte do operariado internacional – o que seria confirmado pela adesão da estrela e produtora do filme à greve dos artistas. 

Leia mais: Junho das mulheres

No tribunal virtual, o público de Barbie seria composto por um enorme contingente de adultos incultos e infantilizados, ou identitários politizando um filme pra crianças. Já os que reclamam da “Barbie Mania” o fazem porque mulheres e homens gays não podem ser fãs de nada. Afinal, há anos homens héteros podem ir fantasiados aos seus 87 filmes de super-heróis lançados por ano e ninguém fala nada.

Não é nada disso, é tudo isso, e ainda tem mais. Tem nostalgia, tem vontade de participar da febre do momento, tem Barbie pra todes. A realidade social é um fenômeno complexo, dotado de muitas facetas, e acho fantástico que tudo isso esteja sendo mobilizado pelo live action de uma boneca. 

Acerto com o passado

Nesse sentido, é interessante acompanhar a produção cultural que emerge no mesmo contexto que Barbie, como o documentário sobre Xuxa Meneghel, recém-lançado na Globoplay. Xuxa, que durante anos foi um pouco uma Barbie à brasileira – no sentido de alienação, consumo, padrão estético e algumas declarações relativas às questões raciais bastante problemáticas -, tornou-se alvo de ataques virtuais por se declarar contra o bolsonarismo e falar abertamente sobre abusos que sofreu ao longo da vida. 

A “Rainha dos Baixinhos” hoje é vista como defensora da democracia, e desde os anos 80 tem sido uma referência importante para as comunidades gay e trans. Olhar sua carreira em retrospecto ajuda a separar a mulher da artista; uma forma de lidar com essa figura poderosa do imaginário da criança brasileira dos anos 80/90. 

Em entrevistas recentes, Xuxa tem abordado temas que evitou ao longo de sua carreira, como o filme Amor, estranho amor, lançado em 1982 com direção de Walter Hugo Khouri. Apesar de ter sido gravado quando ela era menor de idade, a apresentadora passou anos sofrendo acusações de pedofilia por conta da atuação. Na trama ela interpreta uma prostituta que “seduz” um menino de 12 anos. 

Leia mais: Entre Charlotte e Cleópatra, fico com as rainhas que lutam

É uma atitude corajosa. Ao lançar luz sobre o que por anos foi um tabu, a apresentadora devolve a responsabilidade da cena polêmica envolvendo dois adolescentes aos homens adultos que decidiram gravá-la. 

Talvez esse seja o grande trunfo de Barbie: mostrar que todas as decisões envolvendo essa personagem são tomadas por homens. É a abordagem padrão da indústria do entretenimento para a vida de jovens mulheres artistas como Lady Gaga, Britney Spears, Ke$ha e Taylor Swift. Tratadas como bonecas de plástico, operárias de fábricas de fazer dinheiro.  

Assim como Barbie, a trajetória de Xuxa nos fala de um mundo que não existe mais, e de outro em reconstrução. Ambas nos contam uma história que ainda não terminou. Não se trata de tentar definir qual a verdadeira Barbie, ou a verdadeira Xuxa, mas de olhar para as diversas camadas da boneca e da artista. Compor em nossas mentes algo que faça sentido a respeito de nossos ícones afetivos, de como lidamos com o mundo de hoje, e pensar que glamour não é sinônimo de autonomia.

Doutrinação feminista 

Barbie é cheio de referências a clássicos do cinema, mas não te deixa esquecer que se trata de uma história sobre brinquedos. Eles mudam de acordo com o mundo em que são produzidos e essa mudança acontece quando dá lucro. Não foi dessa vez que ativaram o arquétipo da Barbie socialista.

Por outro lado, é compreensível que o filme tenha desagradado a incels e redpillados, a ponto de chamarem a atriz Margot Robbie de feia. O filme não tem pudor em mostrar como o ressentimento – de não ser o centro do mundo ou da vida de uma mulher – pode levar homens a demonstrações ridículas de virilidade e, no limite, tentar transformar o patriarcado numa instituição formal.

Nessa história cheia de pequenos prazeres, somos lembrados de que Barbie é uma boneca de plástico. Ela é uma criação, e não a criadora do patriarcado. A realidade segue conduzida por homens brancos que usam ternos pretos. Refazer o mundo avariado pela sanha da dominação masculina é uma tarefa coletiva. O filme que dizem não ser para criança nos dá uma ótima oportunidade para começar a falar sobre isso com elas.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE