Por Michele Santos
Foi num sobressalto que recebemos a notícia da passagem de Tula Pilar. Poeta, dançarina, performer, quem a conheceu sabe da alegria que emanava pelos poros, tirada de um não-se-sabe-onde, dado os reveses que a vida lhe reservou.
Para conduzir esse texto, peço a licença pra chegar que é praxe donde viemos, a periferia paulistana. E não há como fazê-lo sem passar ao largo do afeto. Aos pés dum baobá, numa África ancestral, imagino Tula preta, Tula glamour, Tula Carolina Maria de Jesus, Tula mãe, Tula mulher, rindo deliciosamente e me permitindo à fala.
Nascida de Minas Gerais, no berço da dificuldade que é criar sete filhos sem as condições ideais, a poeta ainda era criança quando foi trabalhar em casa de família, em troca de “estudo e condição”.
Ocorre que a criança Tula servia não só para o serviço, mas, com olhos gulosos, deu de descobrir a leitura. E, abusada, deu de ler. E pior, escrever. Era demais para as patroas, tão “generosas” por oferecer suas casas para que ela e as irmãs tivessem o que vestir, o que comer, onde dormir. Tula-menina devia de ser o mesmo assombro de sempre, não duvido.
“Escrevo desde menina
Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados
Foram tantos beliscões
Pelas bandas lá de Minas”
Mais tarde, já em São Paulo, depois de ter vivido também no Rio de Janeiro, descobriu os saraus de periferia. À época, o Sarau do Binho e o Sarau da Cooperifa – este último, quando ainda acontecia em Taboão da Serra, município que faz limite com o bairro do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, onde Tula morava. Nesses espaços, encontrou acolhimento para desenvolver sua arte.
Em paralelo, também se tornou revendedora da revista Ocas, uma ONG que oferece auxílio a pessoas em situação de rua, depois que decidiu abandonar a vida de doméstica e babá – o que a levou a ser entrevistada no memorável programa Provocações, apresentado por Antônio Abujamra na TV Cultura, em 2012.
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Foi vendendo a revista, aliás, a primeira vez que a encontrei. Tula lançou os livros Palavras inacadêmicas, em 2004, e Sensualidade de fino trato, em 2017, além de colaborar em diversas antologias, dentre elas: Negras de lá, negras daqui, pela Edições Afrokanse, com textos de mulheres negras do Brasil e da África; e a Coletânea Sarau das mina, antologia independente publicada pelo coletivo paulistano de mesmo nome, lançadas em fevereiro e março deste ano.
Como estrela na terra que foi, Tula achou de ser estrela no céu num 11 de abril de 2019. Aos 29 anos para sempre, como costumava dizer, três filhos e uma vida toda de luta e arte. De luta pela arte. Pelo grito ao exercício da arte aos que não estão predestinados dentro do código socioeconômico e racial no qual ela não cabia. Preta demais, pobre demais, sem diploma demais. “Sou uma garota ousada”, ela responderia em versos mais tarde.
Tula nos deixa, além de sua força e exercício de resistência, o grande questionamento sobre o que é ser artista em um país que não valoriza a carreira como escolha digna. Ser artista no Brasil é coisa de quem carrega a teimosia como patuá.
Acrescente-se a isto o fato de ser negro e oriundo da periferia – lugar onde somos levados a crer todos os dias que a arte é uma linha que não foi feita para que cruzássemos. Por outro lado, é na periferia e de mãos negras que nascem os movimentos culturais mais interessantes: veja aí o samba, o blues, o carnaval, o sarau, o slam, o hip-hop, o funk carioca, o reggae – e segue a lista.
A literatura, arte bem-nascida e dominada por crivos estéticos burgueses desde sempre, nunca foi para nós, embora as manifestações culturais oriundas da quebrada são historicamente apropriadas pelas classes favorecidas.
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É preciso não fazer das vozes pretas de luta um simulacro, mas ouvir, remunerar e reconhecê-las como portadoras legítimas de suas vivências. E lê-las: seu último livro, Sensualidade de fino trato, Tula traz o erótico arraigado ao social, corpo negro que se quer desejo, dispensado de objetificação:
“Amaram-se
Também dançando no ritmo frenético
de um som africano
Vestidos, horas mais tarde,
saem apressados para o trabalho,
entraram no ônibus lotado
rumo ao centro da cidade”
Alegro-me por tê-la convidado a compor a mesa “Literatura negra: identidades em diálogo”, que aconteceu durante a FLIG – Feira Literária do Grajaú, em março deste ano. Sua fala emocionou a todos, incluindo estudantes de escolas públicas que estavam lá.
Pensei em como foi importante para aqueles jovens ouvir uma voz próxima. Que estejam sob os holofotes as pessoas que inspiram representatividade e protagonismo, contestando o racismo estrutural das instituições que enaltecem um Brasil de escritores-categoria-homem-branco. A vida de Pilar foi a contestação irreverente dessa “história única” denunciada pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
Ficam as saudades das suas cachaças artesanais, das noites boêmias, da sabedoria ancestral e do sorriso largo. Obrigada, Tula. Reverência eterna, griot!
“…uma garota ousada!
tenho 29 anos, mas já vivi mais de 100”
Em tempo: No dia 18 de abril foi inaugurado em São Paulo um espaço reservado a expressões literárias da oralidade na Biblioteca Mário de Andrade que leva o nome de Tula Pilar Ferreira. Vivas às gentes da literatura das bordas que imprimem os nossos para a posteridade.
*Michele Santos é escritora paulistana, poeta, professora de escola pública, coorganizadora do Sarau Sobrenome Liberdade e da FLIG – Feira Literária do Grajaú. Publicou o livro independente Toda via, (2015), e os artesanais Deve ser isso (2017) e Las Dos (2018 – em parceria com a poeta Janaína Moitinho), além de textos em diversas antologias e revistas literárias.