
Para muitas mulheres, o puerpério é um período de intensas dúvidas e descobertas, em que nossas emoções estão especialmente à flor da pele e nos deparamos com situações sobre as quais raramente tínhamos ouvido falar antes. Em meio à tanta novidade, a recuperação do parto, a rotina de cuidados com o bebê e a privação de sono podem deixar as recém mães, pais ou cuidadores sensíveis a ponto de uma simples troca de fraldas desencadear uma verdadeira crise existencial.
Nessas horas, nada como ouvir – ou ler – relatos de outras mães para perceber que você não está sozinha, não está ficando louca, não está exagerando e que, sim, vai passar. 60 dias de neblina, o primeiro livro de Rafaela Carvalho, é exatamente esse colo que toda puérpera precisa. Uma série de crônicas curtas – para ler numa mamada – que falam sobre os mais relegados pormenores da vida materna, da primeira ida ao banheiro após o parto aos desafios de lidar com adolescentes, com a paixão característica desse intenso período e uma boa dose de humor.
Depois do sucesso da primeira edição, lançada com recursos próprios, Rafaela, que é formada em nutrição, decidiu entrar de cabeça no mundo das letras e criar a Matrescência, uma editora voltada ao universo da criação de filhos. Além de livros para refletir e rir sobre as dores e delícias da maternidade, como o primeiro de Rafaela ou Mãe perfeita não tá mais se usando, de Roberta Ferec, a editora aposta em títulos infantis para ajudar as famílias a lidarem com fases do desenvolvimento e questões difíceis de se abordar com crianças.
Em Mamãe, você pode ir!, Gabriela Campanella fala de forma poética aos pequenos sobre a “ansiedade de separação”, uma fase em que a criança pode se sentir especialmente desamparada longe da mãe. O mamá é da mamãe, de Giovanna Balogh, ajuda mães e filhos no muitas vezes difícil processo de desmame. Já Filho é filho, de Marianna Muradas, fala com leveza e responsabilidade sobre a adoção. Enquanto Meu corpo, meu corpinho, de Roseli Mendonça, ajuda a conversar sobre a prevenção ao abuso sexual.
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“Sejamos imperfeitas. Paremos de criar padrões inalcançáveis. Sejamos gratas a nossas circunstâncias e a tudo de maravilhoso que temos, graças às mulheres que vieram antes de nós. Honremos toda luta de nossas antepassadas. Por elas, por nós, por eles.”
(Roberta Ferec em Mãe perfeita não tá mais se usando, 2020)
Além de serem ferramentas para abordar assuntos tão comuns quanto delicados com as crianças, os livros trazem também textos que introduzem sua temática aos adultos e sugestões de especialistas em parentalidade e desenvolvimento infantil. Ao ler essas mensagens, nos sentimos menos sozinhos e mais acolhidos e amparados para lidar com essas questões que afetam tanto nosso dia-a-dia, mas nem sempre recebem a devida atenção.
“Tem gente que chama de filho do coração, mas eu gosto de dizer filho, só filho. Porque o que faz um filho ser filho, não é o lugar de onde ele veio.”
(Marianna Muradas em Filho é filho, 2020)
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A fundadora da editora, Rafaela Carvalho, e a responsável pela comunicação, Gabriela Campanella, falaram mais sobre seu trabalho para a coluna:

AzMina: Como surgiu a ideia de criar a editora e quando ela “nasceu”?
Rafaela: Quando estava no processo de lançar o meu primeiro livro, descobri o quão difícil é ser publicada no Brasil, principalmente se você é uma nova escritora. Na época, acabei lançando meu livro de maneira independente, um caminho que também não é simples. Com o tempo, escrevi outros livros e ganhei experiência nesse processo.
Até que um dia recebi um e-mail de uma mãe, que trabalha com educação sexual, que havia escrito um livro infantil sobre o tema e que gostaria da minha opinião sobre o texto. Ao abrir o arquivo, conforme meus olhos iam percorrendo o texto, eu só conseguia pensar: “Eu gostaria de ter esse livro para ler para os meus filhos. Que texto incrível!”.
Foi o empurrão que faltava para fundar a Editora Matrescência, em 2019. E a mulher em questão foi realmente nossa primeira escritora a ser publicada, o nome dela é Roseli Mendonça, autora do livro Meu corpo, meu corpinho.
“Meu corpo, meu corpinho!
tão meu, tão bonitinho!
Com ele eu exploro o mundo.
O corpo é meu, eu não confundo.”
Roseli Mendonça em Meu corpo, meu corpinho, 2019)
AzMina: Como foi a escolha do nome?

Rafaela: Quando minha filha nasceu (eu já era mãe de dois meninos), vivi um puerpério conturbado, um período bastante desafiador e desgastante, emocionalmente falando. Na mesma época, vi um Ted Talk da psiquiatra Dra. Alexandra Sacks. Nessa palestra, a Dra. Sacks falava sobre o termo Matrescência e o processo de se tornar mãe. Foi um momento “Uau!” na minha vida, em que finalmente alguém estava nomeando o que eu sentia, validando os desafios do meu momento. Parece pequeno, mas conseguir nomear processos e sentimentos é um passo poderoso de bem-estar e cura.
Anos depois, quando surgiu a ideia de fundar uma editora focada no público materno e infantil, não tive dúvidas quanto ao nome. Assim nasceu a Editora Matrescência.
[Nota da colunista: “matrescência” é a tradução do termo em inglês “matrescence”, cunhado pela antropóloga estadunidense Dana Raphael em 1973. Apesar de lembrar a palavra “essência”, não tem nada ver com uma tal “essência materna” que toda mulher carregaria, como o patriarcado nos fez acreditar. A palavra, na verdade, relaciona-se à adolescência tomada como um período complexo de transição subjetiva, assim como o processo de se tornar mãe.]
AzMina: Apesar de ser algo tão universal e cotidiano, vocês acham que ainda se fala pouco sobre o universo materno real e a criação dos filhos na literatura? Se sim, por que acham que isso acontece?
Rafaela e Gabriela: Sim. Primeiramente porque até pouco tempo atrás não havia mercado para esse tipo de livro. Nós, mulheres, não falávamos sobre as dores da maternidade. Inclusive esse é um comentário que recebo com bastante frequência, de mulheres mais velhas, já avós: “como eu gostaria de ter escutado sobre isso no meu tempo!”.
O conceito de que uma boa mãe é uma mãe mártir, aquela que abdica de sua vida e ainda por cima não reclama, continua sendo muito forte na nossa cultura. Falar sobre as dificuldades e angústias, tão comuns da vida com filhos, mas tão invisíveis, é algo ainda recente na nossa sociedade. Leva-se tempo para transformar comportamentos culturais e evoluir. Há bastante trabalho a ser feito nessa área e acredito que publicar livros com mensagens relevantes para o universo da parentalidade é uma grande contribuição.
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AzMina: Por enquanto, todas as autoras publicadas por vocês são mulheres. Essa é uma diretriz da editora? Por quê?
Rafaela e Gabriela: Não é exatamente uma diretriz, mas é um caminho que tem sido bastante natural para nós. Faz sentido querer ler mulheres falando sobre assuntos que interessam a nós, mulheres.
AzMina: Qual é a principal preocupação de vocês na hora de escolher e preparar um livro para publicar?
Rafaela e Gabriela: O que mais buscamos são temáticas relevantes e textos ricos em informação, sempre passada com respeito e acolhimento. Somos fiéis ao nosso manifesto: “É preciso amor e cuidado com a força das palavras.”
Com os livros infantis, temos um zelo maior em relação às ilustrações, para que sejam inclusivas e retratem a diversidade.
AzMina: Como tem sido a recepção das/os leitores? A maioria é de mulheres? Vocês acham que os homens também estão começando a buscar informações para se envolver mais na criação dos filhos?
Rafaela e Gabriela: Nossas leitoras são incríveis, incríveis mesmo. Repetimos isso com a boca e o coração cheios. Sem leitoras, não há autoras. Todos os nossos livros foram recebidos de uma maneira extremamente positiva, o que nos incentiva a continuar e melhorar.
A maioria avassaladora do nosso público é composta por mulheres. Vemos, sim, um aumento no interesse dos homens por assuntos relacionados à criação de filhos. E embora essa procura ainda seja tímida e longe do ideal, ela existe e está crescendo.
“Se preciso de consolo, ela fica comigo por um tempo.
Com tranquilidade, me traz conforto,
E juntos trilhamos nosso crescimento.
De verdade, está tudo bem, é parte do meu desenvolvimento.”
(Gabriela Campanella em Mamãe, você pode ir!, 2020)
AzMina: Como vocês trabalham com a questão da paternidade ativa? Pretendem abordar a participação dos homens no cuidado com os filhos também?
Rafaela e Gabriela: Nossas autoras abordam a paternidade ativa em seus textos, enquanto nossos ilustradores sempre trazem o tema para os desenhos e artes que colorem nossos livros.
Nós também temos um livro infantil, Ninjas cuidam do jardim?, que, de maneira lúdica e divertida, traz essa abordagem, quebrando diversos paradigmas. Por exemplo, em alguns dos versos: “Ninjas lavam a louça também? E trocam a fralda dos seus nenéns. Ninjas às vezes ficam cansados? E choram tristinhos se estão magoados. Ninjas nadam com tubarões? Eles sentem é medo daqueles dentões!”.
AzMina: A Rafaela vive nos Estados Unidos – e notei que outras autoras também vivem no exterior. Por que decidiram focar as publicações no público brasileiro?
Rafaela: Apesar de morar no exterior há muitos anos, o português é minha língua materna e a cultura latina esteve presente em toda a minha criação. É mais prazeroso escrever na minha língua e falar com mulheres que, de certa forma, compartilham fragmentos da minha história, que entendem os dilemas e as conquistas, que sacam as piadas e as tiradas. É onde eu sinto que a minha escrita encontra aquilo que todos nós buscamos: pertencimento.
AzMina: Podem nos contar um pouco sobre novos projetos e planos para a Matrescência?
Rafaela e Gabriela: Para este ano temos muitos lançamentos e um leque lindo de temas relevantes. O mais legal é que a maioria das publicações será o primeiro livro de muitas novas autoras!
AzMina: Gostariam de acrescentar algo?
Rafaela e Gabriela: Algo que nos enche de orgulho é que somos uma das editoras brasileiras (senão A editora brasileira) que paga suas autoras com maior porcentagem de direitos autorais. Desenvolvemos um modelo de negócio em que conseguimos pagar 3x mais do que o considerado de praxe no mercado editorial. Nosso objetivo é que cada vez mais autoras tenham a oportunidade de viver da escrita. Escrever é uma entrega intensa e infelizmente o retorno financeiro geralmente é baixo, fazendo com que escritoras precisem encontrar outras formas de trabalho. No que depender de nós, isso também mudará.
AzMina: E como vocês conseguem pagar mais para as autoras?
Rafaela e Gabriela: Conseguimos fazer isso, porque vendemos os livros diretamente pelo nosso site, e não por meio de livrarias. Como as livrarias ficam com uma boa parte da porcentagem do preço de capa, as editoras acabam pagando apenas cerca de 10% desse valor aos autores.