Entre 19 e 23 de março, o extremo sul da cidade de São Paulo foi sacudido pela 1ª Feira Literária do Grajaú (FLIG). O evento foi organizado por um grupo de bibliotecários, professores e artistas da região que trabalharam de forma voluntária, quase sem apoio público ou privado, contando com um financiamento coletivo.
Com uma programação riquíssima, a FLIG é um movimento autônomo e autêntico que traz à tona uma amostra dos caldeirões culturais que fervem nas periferias brasileiras e transformam nossa maneira de ver e fazer arte.
“É muito difícil pra gente que vem da periferia achar que pode ser artista, escritor ou qualquer outra coisa. Porque, a todo momento, nos é mostrado que esse mundo não é pra gente, que a gente nasceu pra ser apenas a mão de obra de alguém”, afirma a escritora e professora Michele Santos, moradora da região, e um dos nomes da literatura que nasce dali pro mundo.
“Poesia nunca servil pra nada.”
(Michele Santos em Toda via, 2015)
Ela ajudou a organizar o evento e apresentou sua poesia ao lado de mulheres como Maria Vilani, autora e agitadora cultural, tida como a matriarca da cena literária da zona sul paulistana; da poeta e militante do feminismo lésbico Bárbara Esmênia; além da escritora, dançaria e vendedora da Revista Ocas Tula Pilar Ferreira, grande nome do movimento de saraus e conhecida como uma Carolina Maria de Jesus dos dias de hoje – que infelizmente faleceu recentemente.
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Embora a produção literária das periferias tenha sido fortemente impulsionada pelo renascimento dos saraus e pela articulação cultural possibilitada pelas redes sociais nos últimos anos, essa produção nem sempre se materializa mais formalmente.
“A produção é intensa, mas a publicação ‘é que são elas’. Por isso, uma das marcas desta cena é a auto-publicação ou a publicação por editoras menores e independentes. Esperamos que a chegada da FLIG nos ajude a ampliar essas possibilidades”, diz Michele.
“Literadura
‘é feia, mas é uma flor’
muitos maus poemas
inda são melhores
que poesia alguma”
(Trecho do poema Sociedade dos poetas vivos, de Michele Santos, Toda via, 2015)
Sobrenome: mulher
Com um estilo enfático e a escolha de temas políticos, a autora, que escreve desde a infância, entrou em contato com os conflitos de ser uma mulher produtora de cultura quando começou a participar do Sarau Sobrenome Liberdade, há cerca de seis anos.
Apesar de serem tidos como espaços livres para a criação artística, muitos saraus reproduziam a mesma ideologia machista do resto da sociedade, silenciando, de modo explícito ou velado, as vozes femininas.
“Escrevo porque sangro
num canto
onde só a palavra estanca”
(Trecho do poema Sobre searas: saraus, de Michele Santos, Toda via, 2015)
Mas as mulheres não se calaram. “Quem participa dessa cena há mais tempo viveu um movimento de mulheres chamado ‘Não poetize o machismo’, no qual vários artistas, inclusive das periferias, foram denunciados por violência contra a mulher ou misoginia”, conta Michele.
Esse movimento impulsionou a criação de espaços de resistência e afirmação feminina nas artes, como o Slam das Minas. “O processo não foi agradável, mas necessário. A gente transitou de uma realidade em que a maior parte das mulheres que participava dessa cena era apenas público. Só os caras eram ‘os fodas’, os artistas consagrados. Hoje, muita coisa mudou!”, comenta a poeta.
“Se eu fizesse poesia
escreveria pássaros
Poemas são todos
tentativas de voo”
(Michele Santos em Toda via, 2015)
O cenário ainda não é ideal, mas a autora percebe como a cena já amadureceu. “As coisas estão mudando e isso é muito lindo de ver. Me sinto orgulhosa de fazer parte dessa transição, dessa luta das mulheres por espaço e por uma voz que a gente sempre teve, mas nem sempre foi ouvida ou ouvida como deveria ser”.
“Viver não deixa de ser um inventar-se diário
e se nosso diário fosse talvez publicado
– se nosso diário quiçá fosse escrito,
ele sangrava.”
(Trecho de poema sem título de Michele Santos em Toda via, 2015)
Reunindo poemas escritos pelos cantos da vida, a autora realizou a auto-publicação do seu primeiro livro, Toda via, em 2015. Para ela, essa materialização da palavra foi essencial para se assumir como escritora, garantir que sua obra perdure de forma mais perene e promover encontros.
“A expansão a partir da publicação foi maravilhosa. Em 2016, quase todos os finais de semana, eu participava de algum evento literário e levava o livro pra vender. Conheci muitas pessoas e lugares assim”, conta.
“um homem triste me amou
com sua pica triste e seu abraço
morno. um homem triste e a morte
pendurada no pescoço me atravessou
como seu eu fosse um pedaço um
buraco. um homem ativista me amou
com sua língua tímida e suas vergonhas
murchas. um homem ativista e suas
taras cubanas me consolaram a vulva
como se eu fosse a camiseta que vira
pano de pia. não não – o pano de chão.
um homem sedutor me amou com
brasas, carmenere y palta. um homem
sedutor que lambia botas de renome
me varou a cona me largou na rua na
manhã de um primeiro dia do ano. um
homem literato me amou por trás e pelas
bandas. um homem literato com uma
biblioteca nos braços me ardeu o grelo
como se eu fosse a culpa de raskolnikov.
um homem nunca perdoa meu uivo solo
de mulher louca no meio da noite um
homem não é afeito a mulheres ex
travagantes eu sou uma mulher
grande: a vênus de willendorf as
tetas e os gritos gigantes pendendo
sobre o mundo eu sou uma mulher tão
eu sou uma mulher muito
meus homens sempre foram meninos”
(houvesse vísceras uma vulva, de Michele Santos em Antologia do Desejo, Editora Patuá, 2018)
Para outras escritoras em começo de autocriação, Michele deixa o recado: “parece que a gente tem que ser foda todo o tempo. Não é fácil, mas é a maneira que a gente encontra de existir e de resistir. Sigamos. E sejamos nós mesmas as que incentivam outras mulheres a seguir a carreira, a serem publicadas. E eu espero lá na frente poder olhar pra trás e ver que esses enfrentamentos foram importantes e ajudaram outras pessoas.”
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