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13 de fevereiro de 2019

Os trajetos do sexo em “Americanah”, de Chimamanda Ngozi Adichie

Juliana Goldfarb conta como o erotismo compõe a experiência da mulher negra imigrante nesta obra prima da consagrada escritora nigeriana - contém spoilers!

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Por Juliana Goldfarb*

Tudo o que Chimamanda Ngozi Adichie toca se torna brilho, tenho certeza disso. Ela é uma das escritoras nigerianas mais lidas na contemporaneidade, adorada por jovens de todo o mundo, mas também amplamente estudada na academia.

Além disso, Chimamanda é militante feminista e carrega o mérito de democratizar vários debates acerca dos feminismos, ao mesmo tempo em que traz um olhar não europeu sobre o tema, por meio de suas palestras: “Os perigos de uma história única” e “Sejamos todos feministas”.

Com uma linguagem acessível, um humor mordaz, personagens muito bem construídos e mesclando outros gêneros não ortodoxos na literatura (como os excertos de blog), Americanah, seu quarto livro, logo se tornou um best-seller.

Em Americanah, romance épico lançado em 2013, podemos acompanhar a trajetória de Ifemelu, uma jovem nigeriana, em seus encontros e desencontros com Obinze. Uma história de amor contemporânea que sobrevive ao tempo, ao silêncio e aos deslocamentos.

Mas o livro é bem mais complexo do que essa síntese: ele é também um retrato ficcional de pessoas subalternas vivenciando a experiência migratória, que são oprimidas especialmente por questões relacionadas ao seu gênero e à sua raça.

Para essa coluna, sigo os rastros da protagonista Ifemelu, procurando reconhecer as cartografias deixadas em/pelo seu corpo, sobretudo nos trechos que envolvem a representação (descrição ou alusão) do sexo. Como afirma o antropólogo cultural norte-americano Gayle Rubin, o sexo é sempre político. Portanto, um corpo distinguido pelo gênero, classe, raça ou etnia tem suas marcas potencializadas no âmbito sexual.

Apesar de não ser uma obra caracterizada como erótica, senti que precisava abordar Americanah a partir desse viés. Primeiro, porque o texto possui vários momentos em que o sexo é determinante para o desenrolar da trama. Segundo, porque esses trechos revelam alguns interditos que envolvem a experiência feminina e negra em um contexto de diáspora. E, terceiro, porque eu precisava falar sobre.

Me assustei quando li e visualizei minha primeira relação sexual, bem como relembrei alguns relatos de amigas que me contaram suas experiências afetivas entre dolorosos sussurros, mas que Chimamanda consegue expor de forma clara e aberta, como deve ser. Enfim, voltemos ao livro.

Apesar de ter crescido em uma família nigeriana conservadora, Ifem (como é carinhosamente apelidada) recusa esse lugar esperado às mulheres. Ela não se prende aos padrões de feminilidade, apresenta opiniões fortes e demonstra desconforto com as relações familiares fincadas no patriarcado.

É uma mulher que busca descobrir-se, desnudar-se: uma fome, uma inquietação. Um conhecimento incompleto de si mesma. A sensação de algo distante, fora do alcance (p. 314).

Ao longo dos quinze anos que acompanhamos Ifemelu, ela também se descobre sexualmente. Primeiro, ao lado de Obinze, os dois passam a “ensaiar” o ato sexual, tocando seus corpos desnudos e trocando carícias. O romance progride criando certa expectativa para a primeira relação sexual deles, sempre ressaltando os momentos de intimidade e leveza entre o casal. O ato, no entanto, é descrito abruptamente, desmanchando um pouco do encantamento que os envolvia:

“[…] ambos estavam rindo, mas a risada estagnou e deu lugar a uma seriedade nova e estranha, uma união escorregadia. Para Ifemelu, era como uma cópia malfeita, uma imitação desajeitada de como ela imaginara que seria. Depois que Obinze saiu de dentro dela, tendo espasmos, ofegando segurando o pênis, ela ficou com uma sensação de desconforto. Tinha passado o tempo todo tensa, sem conseguir relaxar. […] A falta de planejamento a deixara um pouco abalada, desapontada. De alguma maneira parecia não ter valido a pena, no final das contas.” (p. 104)

Assim como para muitas mulheres, a citação apresentada acima é um (possível) marco para a vida adulta e para as assimetrias de gênero. O texto transparece a quebra da idealização da personagem com relação ao ato sexual, que apesar de ser consentido, não ocorreu no momento ou da forma desejada por Ifemelu.

A única frase que demarca que houve, de fato, uma relação com penetração é iniciada com o advérbio depois. E o ato, ocorrido sem conversas preliminares esclarecendo desejos e sem proteção cria uma sensação de abismo entre Obinze e Ifemelu.

O medo posterior de uma gravidez amplia o desconforto de Ifemelu, enquanto essa não parece ser uma preocupação de Obinze: “[…] a natureza é injusta com as mulheres. Um ato é cometido por duas pessoas, mas se há consequências, apenas uma sofre.”

O momento de instabilidade política e econômica na Nigéria leva Ifemelu a decidir concluir sua graduação nos EUA. É quando chega lá que seu corpo mais pesa. O peso da diferença, de vir de um país colonizado, de sentir na pele o preconceito e de se descobrir negra e marginalizada. Após sucessivas recusas de ofertas de emprego, e desesperada com sua crise financeira, Ifem acaba por aceitar a única proposta de trabalho oferecida a ela:

“Havia, na expressão e no tom de voz do homem, uma segurança completa. Ela se sentiu derrotada. Como era sórdido tudo aquilo, o fato de estar ali com um estranho que já sabia que ela ia ficar. Sabia que ia ficar pelo fato de ter ido. Já estava ali, já fora maculada. Ifemelu tirou os sapatos e deitou na cama dele. Não queria estar ali, não queria o dedo dele se movendo entre suas pernas, não queria ouvir os suspiros e gemidos dele em seus ouvidos, mas sentiu seu corpo despertando numa excitação nauseante. Depois, ficou imóvel, enrodilhada e dormente. O homem não a forçara. Ela tinha vindo por conta própria. Tinha deitado naquela cama e, quando ela colocou sua mão entre as pernas dele, enroscou-se e moveu os dedos. Agora, mesmo depois de ter lavado as mãos, que seguravam a nota nova e fininha de cem dólares que o homem lhe dera, seus dedos ainda pareciam grudentos; não pertenciam mais a ela.” (p. 168-169)

O trecho acima evidencia o lugar que um país neoimperial pode destinar às mulheres que ousam migrar. A segurança apresentada pelo homem diz muito sobre aquele momento: ele provavelmente já teria feito o mesmo ato diversas vezes, com outras mulheres em situação de subalternidade; ele tem plena consciência do seu lugar de poder como homem, branco, cidadão norte-americano e com um emprego fixo frente a uma mulher, negra, advinda de um país africano, sem cidadania e sem ter como se sustentar.

Para ele, o corpo feminino existia como objeto sexual a ser apropriado, invadido, usado, descartado. A troca sexual se insere, nesse contexto, como vetor de opressão. Seu corpo se tornara território invadido.

Em certo momento do enredo, Ifem se relaciona com Curt, seu “namorado branco e gostoso”, como ela o descreve. Ele se interessou por ela quando a viu gargalhando. E deixou isso bem claro: “Foi isso que me pegou. E sabe o que eu pensei? Se ela ri assim, como será que faz outras coisas?” (p. 208.), em uma brincadeira repleta de erotização e exotificação.

“Curt lhe disse que nunca tinha se sentido tão atraído por uma mulher antes, nunca havia visto um corpo tão lindo, seus seios perfeitos, sua bunda perfeita. Ifemelu achou engraçado o fato de ele considerar perfeito o que Obinze chamava de bunda achatada, e ela achava que seus seios eram grandes como quaisquer outros, já um pouco caídos. Mas as palavras dele lhe agradaram, como um presente generoso e desnecessário. Ele queria sugar seu dedo, lamber mel do bico do seu seio, espalhar sorvete em sua barriga, como se não fosse o suficiente ficar deitado sentindo sua pele nua contra a dela.” (p. 213)

Havia algo implícito naquele relacionamento, em que ele era o homem branco bondoso e salvador, e ela deveria ser eternamente grata e fiel a ele. Seu relacionamento com Curt foi decaindo à medida em que ela foi se reconhecendo como mulher negra, com pautas que ele não compreendia e debates que não o cabiam.

Ao voltar para a Nigéria e se reencontrar com Obinze, Ifemelu declara: “eu sempre via o teto com os outros homens” (p. 481), como quem anseia enfatizar que seu corpo estava adormecido enquanto vivia nos Estados Unidos e a materialidade que seus desejos ganhavam ao lado de seu amado:

“Ifemelu se aproximou e beijou-o, e a princípio ele foi lento em sua resposta, mas então estava tirando sua blusa, abaixando o sutiã para libertar seus seios. Ela recordava claramente a firmeza do abraço dele, mas também havia algo de novo em sua união; seus corpos se lembravam e não se lembravam. Ifemelu tocou na cicatriz do peito de Obinze, lembrando-se dela de novo. Sempre tinha achado a expressão “fazer amor” piegas; “fazer sexo” parecia mais verdadeira e “transar” era mais excitante, mas quando ela se viu deitada ao lado dele depois, ambos sorrindo, às vezes rindo, seu corpo transbordando paz, pensou em como era apropriada a expressão “fazer amor”. Até suas unhas estavam despertando, as partes de seu corpo que sempre tinham estado dormentes.” (p. 481)

Assim, voltar para Obinze é voltar para casa, seu desejo é sua pátria. Nessa geografia íntima, Ifemelu consegue libertar seu corpo, se encontrar, se sentir plena, quando é levada pelo seu prazer e se entrega a Obinze. O apelido dele, “Teto”, recebido por ele no início do livro, confirma o modo como a relação é mapeada: para Ifemelu, prazer significava teto e teto significava Obinze.

Diferente da maioria das descrições no romance, em que Ifemelu não era apresentada de forma ativa no ato sexual, naquele momento, seu corpo, seus desejos e seu ritmo eram ouvidos. Entre tantos trajetos, Ifem, enfim, se torna protagonista durante o sexo.

*Juliana Goldfarb é uma mãe feminista. Tenta fortemente aliar a militância, a maternidade ativa e o doutorado em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Estuda erotismo (tentando, sempre, aliar teoria e prática), lê mulheres, sente saudade da Paraíba e escreve uns poemas.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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