Por Fernanda R. Miranda*
Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra brasileira nascida em Sacramento, Minas Gerais, provavelmente em 1914. Múltipla, única, imensa. Sua trajetória no mundo literário inspira iniciativas em vários campos do pensamento, da arte e do político.
Uma mulher negra que rompeu diversas barreiras e criou possibilidades de existência através do discurso. Sua inscrição no mundo público inspira inúmeras insurreições contemporâneas. Carolina Maria de Jesus é madrinha de grupos que lutam pela democratização do ensino, dá nome a cursinhos pré-vestibulares comunitários, a escolas, bibliotecas públicas, a projetos de escolarização de jovens e adultos e a centros acadêmicos em universidades em diversos estados pelo país. Seu nome mobiliza articulações de luta pelo direito à moradia e iniciativas de bem-viver dentro de favelas e comunidades. Batiza coletivos feministas e grupos de mulheres. Nomeia células do protesto negro Brasil afora. Dá nome também a instituições de cuidados com a saúde e bem-estar.
Sua trajetória inspira diálogos entre vários campos da criação artística: na literatura, na performance, no teatro, na música, em HQs, em produções audiovisuais, em saraus literários. No mundo das publicações Carolina também é inspiração, nomeando pelo menos duas editoras. No campo acadêmico, a autora já mobiliza uma fortuna crítica considerável sustentada em diversos artigos, dissertações e teses que se dedicaram ao estudo de sua obra desde áreas distintas do conhecimento. Além dos estudos literários propriamente, há trabalhos dedicados à sua vida e obra na Geografia, Ciências sociais, Arquitetura, Estudos da Tradução, Música, Serviço social, Psicologia. Quarto de despejo foi/é leitura obrigatória dos vestibulares da UFMG (2001), da Unicamp (2017) e da UFRGS (2018).
Quando chega oficialmente no universo público de circulação de discursos, sua presença – mulher, negra, pobre, favelada, mãe solteira – instaura de imediato uma pergunta política para o sistema literário brasileiro: quem pode escrever? Ou mais precisamente, quem pode escrever literatura? Desde os anos 1960 até o momento contemporâneo essa pergunta ainda movimenta debates calorosos, pois o pertencimento de Carolina ao território literário é um campo visivelmente em disputa.
A primeira face dessa disputa está impressa na própria obra da autora: trata-se do posicionamento do editor Audálio Dantas, veiculado no prefácio que ele escreveu para o livro Casa de alvenaria – diário de uma ex-favelada (1961), segunda obra publicada de Carolina. Num contexto de grande sucesso de Quarto de despejo (1960), diz ele: “Você contribuiu poderosamente para a gente ver melhor a desarrumação do Quarto de Despejo. Agora você está na sala de visitas e continua a contribuir com este novo livro, com o qual você pode dar por encerrada a sua missão. (…) Guarde aquelas “poesias”, aqueles “contos” e aqueles “romances” que você escreveu”.
A interdição de Carolina ao campo da escrita literária aparece aqui abertamente na voz autoritária de um homem branco da classe letrada que decreta o fim da missão da escritora dentro do próprio livro dela, solicitando que guarde – isto é, apague, silencie, torne invisível – os seus escritos. Uma violência que não pode ser tratada como algo datado, restrito a um momento histórico especifico, pois o silenciamento da voz da mulher negra no Brasil e na literatura brasileira é sistêmico e atravessa temporalidades. Por isso mesmo, a perspectiva do editor não ficou circunscrita à década de 1960, ao contrário, segue atualizada no presente.
Todas e todos nós presenciamos essa perspectiva atuando, em pleno 2017, na ocasião de uma fatídica homenagem à autora promovida pela Academia Carioca de Letras, na qual, o professor de literatura Ivan Cavalcanti Proença reiterou o mesmo ponto de vista do editor Audálio Dantas, afirmando que o livro de Carolina “é o relato natural e espontâneo de uma pessoa que não tinha condições de existir por completo”. Segundo ele: “Só tem uma coisa, isso não é literatura”, e explica: “Cheia de períodos curtos e pobres, Carolina, sem ser imagética, semianalfabeta, não era capaz de fazer orações subordinadas, por isso esses períodos curtos”, e para completar, diz ele: “Ouvi de muitos intelectuais paulistas: ‘Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever’”.
A permanência do debate em torno de seu pertencimento à literatura, constantemente atualizado por instâncias oficias de legitimação, é reveladora dos traços coloniais e eurocêntricos constituintes do nosso sistema literário, tão profundamente atravessando por silenciamentos impostos aos sujeitos à margem. Entre as falas do editor e do professor, no entanto, existe uma diferença fundamental – hoje, nossas vozes-negras-mulheres-plurais estão circulando em maior dimensão, intensamente disputando valores e significados frente à narrativa única. Em resposta ao professor, entre muitas outras coisas, escreveu a poeta e atriz Elisa Lucinda: “Se me perguntarem o que mais me incomoda no epidêmico e sistemático racismo direi que é o olhar que depositam sobre nós a proferir as mesmas mudas perguntas: ‘como ousas? O que você está fazendo aqui? Você não sabe que aqui não é o seu lugar?’”.
Carolina Maria de Jesus ocupa um lugar vital na literatura brasileira. Uma voz soberana, inquieta, aguerrida, grande e líquida demais para ser emparedada em rótulos. Uma voz que resiste em alto e bom som, existindo apesar das mediações e agenciamentos do outro. A sua trajetória nas letras é de luta incansável: lutou contra vários empecilhos para praticar a escrita, como falta de tempo, de recursos, de suporte. Mas o principal dos obstáculos foi a própria sociedade, que não concebia uma mulher negra pobre escrevendo, sendo autora, sujeito do conhecimento – são inúmeras as passagens em que Carolina narra o assombro das pessoas quando entendiam que ela havia escrito um livro. Em Quarto de despejo ela comenta a reação de alguns diante das primeiras reportagens que divulgaram a eminente publicação desse diário: “10 de junho de 1959. Na cidade eu disse para os jornaleiros que a reportagem era minha. Como eu estava limpa não acreditaram. Pensei: será que eu tenho que andar sempre suja?”.
“14 de novembro de 1959: Agradeci e voltei para fechar a porta e pegar a revista O Cruzeiro para mostrar ao farmacêutico O senhor Jesus. Atual dono da farmácia Jaruá. Porque ele está duvidando da minha sanidade. Devido eu falar o clássico e andar tão suja. Vou mostrar-lhe a revista para desfazer as dúvidas. É por isso que eu digo que o jornal favorece. Fui na farmácia, comprei os remédios e mostrei-lhe a revista. Ficaram admirados. […] Parei para conversar com uma senhora que reside na esquina na rua Araguaia e mostrei-lhe a reportagem. Ela admirou – disse-me que ouviu dizer que escrevo mas, não acreditou porque eles pensam que quem escreve é só as pessoas bem vestidas. Na minha opinião, escreve quem quer”.
A luta também se deu na busca por ser publicada. Antes de seu encontro com Audálio Dantas, ela já havia feito algumas tentativas de lançar seus textos, e, depois que ele não quis mais editá-la, ela própria financiou a publicação de alguns de seus trabalhos (por exemplo, Pedaços da fome, de 1964, que é o terceiro romance de uma autora negra publicado no Brasil).
Certo dia, ela escreveu em seu diário: “Hoje estou com frio. Frio interno e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, Oh meu Deus! Preciso de voz!”. A súplica pela voz não significa mudez, justo o contrário, pois ela suplica escrevendo, isto é, através da escrita. Carolina sabia como poucos que a boca é um órgão político e existencial vital quando fala, e enfrentou bravamente e durante toda sua vida os mecanismos de silenciamento.
Aqui cabe relembrar a pergunta fundamental da teórica indiana Gayatri Spivak: “Pode o subalterno falar?”, cuja resposta é não, pois a condição de subalternidade é sustentada pela condição afônica, de modo que quando profere seu ato de fala, o sujeito já não é mais subalterno. A fala do sujeito negro é analisada pela socióloga e multiartista afro-portuguesa Grada Kilomba em seu livro Plantation Memories (2010) enquanto parte fundamental da desarticulação dos mecanismos coloniais de dominação: a boca, segundo ela, era um órgão tão perigoso que precisava ser forçadamente silenciado com o uso de uma máscara. De outro lado, em seu A transformação do silêncio em linguagem e ação, a escritora afro-estadunidense Audre Lorde conclama as mulheres às inescapáveis interrogações do presente cotidiano: “Quais são as palavras que você ainda não possui? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole diariamente e tenta tornar suas, até que você adoeça e morra delas, ainda em silêncio?”. Nessa chave, Lélia Gonzalez, referência central do feminismo negro no Brasil toma para epígrafe de seu Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira um verso da canção de Abel Silva: “Só uma palavra me devora, aquela que o meu coração não diz”.
Quando chegou em São Paulo, Carolina logo reparou nos sorrisos das pessoas que falavam. “Olhava aquele povo bem vestido. Será que todos eles são ricos? Olhava os brancos, estavam bem vestidos. Olhava os pretos, estavam bem vestidos. Os que falavam, tinham dentes na boca e sorriam. E se o povo está sorrindo então a cidade é boa. Aquela tristeza que senti foi desaparecendo aos poucos” (Meu estranho diário, 1994, p. 185). Migrante recém chegada do interior de Minas, Carolina desembarcou na estação da Luz em 1947. Viu da cidade primeiro o centro e capturou, em sua primeira visada sob a multidão, a expressão dos sujeitos que não estavam mudos: as bocas que falavam, brancas ou negras, eram as bocas que sorriam, e se havia sorrisos na boca do povo, então a cidade devia ser boa. Mas ela rapidamente se localizou e compreendeu a engrenagem urbana, que traduziu em uma dicção própria, desde o ponto de vista de quem estava no quarto de despejo da cidade e da palavra.
Carolina Maria de Jesus foi uma mulher da escrita, este foi sempre o seu lugar de predileção, conforto e destino. A escrita era seu lugar de elaboração do íntimo, do lúdico, do político, da memória, do cotidiano. A escrita era o seu território, seu teto seguro, sua morada. Uma autora fundamental para entendermos os processos de valoração e legitimação do texto literário, rompeu com o lugar imposto pela ordem nacional colonial racista e machista através da escrita, inscrevendo sua voz livre e altiva de mulher negra aguerrida no mundo público, quando dela só esperavam o silêncio. Contudo, tão importante quanto o ato de fala é a descolonização do ato de escuta, resta interpelar então os filtros pelos quais sua voz é captada hoje.
*Fernanda R. Miranda dedicou-se à obra de Carolina Maria de Jesus no mestrado (Letras/USP, 2013). Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre o corpus de romances de autoras negras brasileiras (Letras/USP). Publicou Carolina Maria de Jesus – literatura e cidade em dissenso, 2017.
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