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7 de novembro de 2018

Lubi Prates: cartografias poéticas e úteros geográficos em “um corpo negro”

"Ouso dizer que um corpo negro é um dos livros mais importantes desse ano e Lubi Prates fez nessa obra um poderoso trabalho de resgate e exaltação da ancestralidade desse corpo que é espaço simbólico da disputa do discurso", escreve Pilar Bu.

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lubi prates
Lubi Prates (Arquivo pessoal)

Por Pilar Bu*

Eu acho que já li um corpo negro três vezes. Mentira, se eu contar essa que estou lendo para escrever esse texto são quatro. E todas elas me emocionam. A ideia de escrever esse texto surgiu porque o Leia Mulheres Goiânia vai ler um corpo negro em sua edição de novembro, aproveitando a passagem de Lubi Prates pelo nosso amado cerrado brasileiro. E esse combo Leia Mulheres Goiânia + poeta que adoramos + livro novo = irresistível!

Quando a gente olha tudo o que a Lubi Prates já publicou, tudo o que já viveu em projetos literários, oficinas, na vida, percebe que ela chega nesse livro muito grande mesmo.

Não existe ponta solta em um corpo negro, Lubi Prates construiu o livro para que a costura poética te leve de um poema ao outro de forma instigante, voraz. A narrativa desvela uma história que é individual e coletiva, de tornar-se e reconhecer-se negrx. Esse corpo que se revela poema e transborda:

“meu corpo é

meu lugar

de fala

 

e eu falo com meus cabelos e

meus olhos e

meu nariz.

 

meu corpo é

meu lugar

de fala

 

e eu falo

com a minha raça”

O corpo inteiro da enunciadora é ferramenta poética, é sujeito do próprio discurso, desloca o olhar do leitor para práticas poéticas de emancipação e fala de uma raça que se quer representada. A fala, o lugar, é verbo vertido em ação.

Leia também: Carolina Maria de Jesus: Uma voz que resiste ao silenciamento 

Os poemas, segundo Lívia Natália no prefácio do livro, “se organizam pelo desamparo, pelos escombros, pelas humanidades adernadas no fundo do oceano” e é tanto no escombro quanto no desamparo que a voz da enunciadora se levanta. Essa fala, que vem desse corpo em enunciação, anunciação, que precisa ser ouvida.

Uma voz que também denuncia e nos revela essa intensa preocupação com a ancestralidade, o reconhecimento de uma genealogia, de uma história silenciada e violentada. A enunciadora problematiza os termos mátria e pátria porque procura desvelar aquilo que tem sido encoberto pelo racismo estrutural:

“não é mãe

se permite que grite

até a rouquidão

mas num idioma

que ninguém compreende”

Essa voz que grita, incompreendida por uma língua que não lhe pertence e não lhe representa, revela sofrimento. Revela as violências e reminiscências atravessadas pelo povo africano em diáspora. Se tomarmos os conceitos de Conceição Evaristo, são escrevivências compartilhadas; se tomarmos os conceitos de Leda Martins, são produtos vivos de uma oralitura de reminiscências experimentadas. Lubi Prates sabe com quem se alinha e que não anda só. Esse útero, chamado no poema de geográfico, rasura, ao mesmo tempo em que problematiza, uma tradição eurocentrada e misógina:

”                  como chamar de

pátria

 

o lugar onde nasci

 

se parir é uma

possibilidade apenas feminina e

 

pátria traz essa imagem

masculina & país traz essa

imagem masculina & o próprio

pai em si”

Outra denúncia que a poeta faz é sobre essa eterna condição de imigrante, dentro e fora da própria terra. O despertencimento que constantemente se anuncia, que constantemente evidencia a violência de ser estrangeira, estrangeira porquê negra:

“1.

desde que cheguei

um cão me segue

 

&

 

mesmo que haja quilômetros

mesmo que haja obstáculos

 

entre nós

 

sinto seu hálito quente

no meu pescoço.

 

desde que eu cheguei

um cão me segue”

A vigília constante, aqui simbolizada pelo cão, é o controle acirrado que se faz sobre o corpo imigrante, esse corpo negro, ao qual não é permitido se realizar por completo. Subjetividade cuja existência é resistência em uma sociedade pautada por práticas sociais opressoras e racistas:

“você traz na pele

todos os tons da terra

e eu tento adivinhar

inutilmente

quantos continentes você percorreu

hasta aqui, hasta mi

quais continentes você percorreu

hasta aqui, hasta mi

pra guardar em si

tanta cor & esse cheiro que acentua quando tempestades”

A enunciadora tenta, inutilmente, adivinhar, os continentes percorridos, mas sabe da empatia que se faz nas marcas, nos códigos, na pele habitada por ela e por quem ela coloca em diálogo dentro do poema. É belo, provocador, instigante tudo que a poeta nos revela, o que nos ensina. E é importante exercitar essa escuta, não se colocar no lugar passivo diante da violência. Lubi Prates nos convida à reflexão:

“você nunca sentiu uma arma

apontada para sua cabeça

enquanto repetia: é um engano

você não é negro, você sempre

esteve em segurança”

Mapas; cartografias; a pele que se revela, ora habitada, ora habitante; as línguas; as feridas abertas; os olhos diante do horror, entre tantas outras imagens que os poemas emanam, procuram evidenciar esse lugar que se ocupa no mundo, esses fragmentos e memórias de uma coletividade negra que precisa ser visibilizada. Ouso dizer que um corpo negro é um dos livros mais importantes desse ano e Lubi Prates fez nessa obra um poderoso trabalho de resgate e exaltação da ancestralidade desse corpo que é espaço simbólico da disputa do discurso. É luta por (r)existência e representatividade. É lugar de fala.

Dia 21 de novembro, nós temos um encontro marcado no Leia mulheres Goiânia, quando as queridas mediadoras, a Maria Clara Dunck, a Cris Melo e a Taluana Wenceslau, receberão a Lubi Prates para um bate-papo sobre essa poesia que emancipa e liberta e para o lançamento de um corpo negro.

Leia Mulheres Goiânia

Livro: um corpo negro, de Lubi Prates

Data: 21/11/2018

Horário: 19 horas

Local: Livraria Palavrear

Mediação: Maria Clara Dunck, Cris Melo e Taluana Wenceslau

 

Pilar Bu (Arquivo pessoal

*Pilar Bu é poeta, leoa, feminista e mãe felina de quatro gatos. Doutoranda em Teoria Literária na Unicamp, seus projetos são sobre a (auto)representação de mulheres na literatura.

 

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