Por Pilar Bu*
Eu acho que já li um corpo negro três vezes. Mentira, se eu contar essa que estou lendo para escrever esse texto são quatro. E todas elas me emocionam. A ideia de escrever esse texto surgiu porque o Leia Mulheres Goiânia vai ler um corpo negro em sua edição de novembro, aproveitando a passagem de Lubi Prates pelo nosso amado cerrado brasileiro. E esse combo Leia Mulheres Goiânia + poeta que adoramos + livro novo = irresistível!
Quando a gente olha tudo o que a Lubi Prates já publicou, tudo o que já viveu em projetos literários, oficinas, na vida, percebe que ela chega nesse livro muito grande mesmo.
Não existe ponta solta em um corpo negro, Lubi Prates construiu o livro para que a costura poética te leve de um poema ao outro de forma instigante, voraz. A narrativa desvela uma história que é individual e coletiva, de tornar-se e reconhecer-se negrx. Esse corpo que se revela poema e transborda:
“meu corpo é
meu lugar
de fala
e eu falo com meus cabelos e
meus olhos e
meu nariz.
meu corpo é
meu lugar
de fala
e eu falo
com a minha raça”
O corpo inteiro da enunciadora é ferramenta poética, é sujeito do próprio discurso, desloca o olhar do leitor para práticas poéticas de emancipação e fala de uma raça que se quer representada. A fala, o lugar, é verbo vertido em ação.
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Os poemas, segundo Lívia Natália no prefácio do livro, “se organizam pelo desamparo, pelos escombros, pelas humanidades adernadas no fundo do oceano” e é tanto no escombro quanto no desamparo que a voz da enunciadora se levanta. Essa fala, que vem desse corpo em enunciação, anunciação, que precisa ser ouvida.
Uma voz que também denuncia e nos revela essa intensa preocupação com a ancestralidade, o reconhecimento de uma genealogia, de uma história silenciada e violentada. A enunciadora problematiza os termos mátria e pátria porque procura desvelar aquilo que tem sido encoberto pelo racismo estrutural:
“não é mãe
se permite que grite
até a rouquidão
mas num idioma
que ninguém compreende”
Essa voz que grita, incompreendida por uma língua que não lhe pertence e não lhe representa, revela sofrimento. Revela as violências e reminiscências atravessadas pelo povo africano em diáspora. Se tomarmos os conceitos de Conceição Evaristo, são escrevivências compartilhadas; se tomarmos os conceitos de Leda Martins, são produtos vivos de uma oralitura de reminiscências experimentadas. Lubi Prates sabe com quem se alinha e que não anda só. Esse útero, chamado no poema de geográfico, rasura, ao mesmo tempo em que problematiza, uma tradição eurocentrada e misógina:
” como chamar de
pátria
o lugar onde nasci
se parir é uma
possibilidade apenas feminina e
pátria traz essa imagem
masculina & país traz essa
imagem masculina & o próprio
pai em si”
Outra denúncia que a poeta faz é sobre essa eterna condição de imigrante, dentro e fora da própria terra. O despertencimento que constantemente se anuncia, que constantemente evidencia a violência de ser estrangeira, estrangeira porquê negra:
“1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que eu cheguei
um cão me segue”
A vigília constante, aqui simbolizada pelo cão, é o controle acirrado que se faz sobre o corpo imigrante, esse corpo negro, ao qual não é permitido se realizar por completo. Subjetividade cuja existência é resistência em uma sociedade pautada por práticas sociais opressoras e racistas:
“você traz na pele
todos os tons da terra
e eu tento adivinhar
inutilmente
quantos continentes você percorreu
hasta aqui, hasta mi
quais continentes você percorreu
hasta aqui, hasta mi
pra guardar em si
tanta cor & esse cheiro que acentua quando tempestades”
A enunciadora tenta, inutilmente, adivinhar, os continentes percorridos, mas sabe da empatia que se faz nas marcas, nos códigos, na pele habitada por ela e por quem ela coloca em diálogo dentro do poema. É belo, provocador, instigante tudo que a poeta nos revela, o que nos ensina. E é importante exercitar essa escuta, não se colocar no lugar passivo diante da violência. Lubi Prates nos convida à reflexão:
“você nunca sentiu uma arma
apontada para sua cabeça
enquanto repetia: é um engano
você não é negro, você sempre
esteve em segurança”
Mapas; cartografias; a pele que se revela, ora habitada, ora habitante; as línguas; as feridas abertas; os olhos diante do horror, entre tantas outras imagens que os poemas emanam, procuram evidenciar esse lugar que se ocupa no mundo, esses fragmentos e memórias de uma coletividade negra que precisa ser visibilizada. Ouso dizer que um corpo negro é um dos livros mais importantes desse ano e Lubi Prates fez nessa obra um poderoso trabalho de resgate e exaltação da ancestralidade desse corpo que é espaço simbólico da disputa do discurso. É luta por (r)existência e representatividade. É lugar de fala.
Dia 21 de novembro, nós temos um encontro marcado no Leia mulheres Goiânia, quando as queridas mediadoras, a Maria Clara Dunck, a Cris Melo e a Taluana Wenceslau, receberão a Lubi Prates para um bate-papo sobre essa poesia que emancipa e liberta e para o lançamento de um corpo negro.
Leia Mulheres Goiânia
Livro: um corpo negro, de Lubi Prates
Data: 21/11/2018
Horário: 19 horas
Local: Livraria Palavrear
Mediação: Maria Clara Dunck, Cris Melo e Taluana Wenceslau
*Pilar Bu é poeta, leoa, feminista e mãe felina de quatro gatos. Doutoranda em Teoria Literária na Unicamp, seus projetos são sobre a (auto)representação de mulheres na literatura.
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