
No dia 15 de maio de 2020, uma poderosa torrente de palavras se calou. A escritora, jornalista e tradutora Olga Savary faleceu aos 86 anos no Rio de Janeiro. A literatura brasileira perdeu uma de suas maiores poetas – mas, se formos espertas, seguiremos honrando e ecoando seu legado.
Savary, como gostava de ser chamada pelos amigos, foi uma das autoras mais prolíficas dos nossos tempos. Manteve-se ativa até o fim da vida, sempre trabalhando em um novo projeto. “Vivo – em todos os sentidos – do meu trabalho, sobrevivo dele, vivendo monasticamente (…). Tenho orgulho de ser autossuficiente e viver do que crio”, escreveu em uma das últimas cartas que trocamos.
Não por acaso, ela foi a primeira autora tema desta coluna que busca visibilizar a produção literária de mulheres. Além de ser uma das minhas grandes musas poéticas e tema da minha pesquisa de mestrado, a trajetória tão inspiradora de Savary, infelizmente, ilustra bem a injusta desvalorização da literatura de autoria feminina.
Não chegamos a nos conhecer pessoalmente, mas trocamos diversas cartas e telefonemas ao longo dos últimos anos. Muito generosa com quem pesquisa sua obra, ela sempre fazia questão de atualizar os impressionantes números da sua produção: mais de 20 livros publicados, 40 obras latino-americanas traduzidas ao português, 60 prêmios literários e a participação em cerca de mil e quinhentas obras coletivas, como autora ou organizadora.
Mesmo assim, e apesar de ter sido muito influente no meio cultural nacional nas décadas de 1970 e 1980, Savary não teve o reconhecimento que merecia em vida. Com a ocupação dos espaços literários, acadêmicos e midiáticos por mais mulheres e pessoas comprometidas com pautas feministas, espero que consigamos mudar esse cenário. Não apenas pela memória de autoras como ela, mas para a criação de repertórios culturais mais representativos que fortaleçam nossas lutas por diversidade e igualdade social para todas e todos.
Leia mais: Olga Savary: pioneira da poesia erótica no Brasil – e mais
Afinal, a poesia desta autora paraense nos instiga à percepção da força que construímos ao nos apossarmos de nossos corpos e desejos para vivermos nossa autonomia. Em uma de suas obras mais emblemáticas, o livro de poesia erótica Magma, de 1982, a vivacidade parece estar intimamente ligada à independência da enunciadora:
“VIDA
É das uvas roxas que abocanho
em tua boca e em teu fruto exposto
que faço meu vinho, meu sangue,
que para ti como um rio corre,
minha paixão, muso do meu canto
vindo do fundo da terra,
basalto e magma, esperma
de fundas furnas e de grutas
e das fendas submersas
de onde atocaiado tu me espias,
para ti meu canto, um também roxo canto
uivando das entranhas, mãos, garganta
a me dizer: vida
a ser trazida
entre os dentes
atravessada
tal uma faca.”
(SAVARY, 1982, p. 50)
Nos poemas de Savary, a mulher deixa de ser apenas musa cantada por vozes masculinas, como na poesia tradicional, para encontrar sua própria voz. Com “alegria e dignidade” – que a autora dizia serem suas “palavras-chave” – a voz feminina que enuncia os poemas canta suas vivências, sua sexualidade e até seus “musos”.
Leia mais: “A pornografia é uma fome, podemos saciá-la com um banquete ou um salgadinho”
Em sua obra, as fronteiras entre os corpos masculinos e femininos se confundem e não há hierarquia entre os gêneros nas relações sexuais e afetivas. Livre para gozar de suas experiências, a enunciadora parece buscar sempre um regresso à essência vital, através da sensação de morte e renascimento do êxtase erótico:
“SER
o sexo tão livre, natural, obsessivo
como areia e seixos rolados:
regresso à água.”
(SAVARY, 1982, p. 16)
Aqui, a água, tão presente na obra de Savary, assemelha-se à “substância oceânica” descrita pelo poeta mexicano Octavio Paz – um dos autores traduzidos por ela ao português – como a sensação de estar “envolto e movido pela totalidade da existência”(A dupla chama, 1994, p. 196).
Essa sensação de completude e profunda união com a natureza pode ser experimentada no encontro erótico com outra pessoa, mas também em conexão consigo mesma:
“SENSORIAL
Íntima da água eu sou por força,
mar, igarapé, rio ou açude,
pela água meu amor incestuoso.”
(SAVARY, 1982, p. 17)
Regressa, então, à água, poeta. Por aqui, cuidaremos do seu legado.