“Sou professora, classe média e branca. Assim como outras tantas mulheres, também fiz um aborto. Em 2017, aos 28 anos de idade, em meio ao maior romance da minha vida, descobri que estava grávida. Nós estávamos completamente apaixonados.
Utilizávamos o método de coito interrompido. Apesar de conhecermos os riscos do método, nos sentíamos seguros ao utilizar ele, principalmente porque eu acompanhava meu ciclo menstrual por meio do método de percepção natural, tinha uma relação muito boa com meu corpo e meus ciclos.
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Desconfiei da gravidez antes mesmo da menstruação atrasar, pois conhecia meu corpo. Me sentia estranha, emocional; passei um dia inteiro me questionando sobre a possibilidade da gravidez, olhei minhas anotações e identifiquei uma falha na minha percepção: havia ovulado logo após a menstruação e tinha o costume de fazer sexo não interrompido quando menstruada. Não sei se todas sabem, mas espermatozoides podem ficar vivos dentro de nós por longos três dias.
Entre descobrir, contar pro meu companheiro, decidirmos e, de fato, interromper a gravidez, foram duas semanas. Longas semanas, nas quais mal comi, deixei de praticar exercícios físicos, levantar da cama feliz, ter prazer em fazer as pequenas coisas do dia a dia.
Optei pelo uso de comprimidos para abortar, que foram enviados para mim por uma ONG magnífica, que deu todo o suporte que precisei.
O aborto foi tranquilo, quase não doeu, durou poucas horas. Terminei a noite tomando vinho e comendo uma massa com meu companheiro e uma amiga. Tive apoio e acolhimento emocional desde o descobrimento até a interrupção.
Eu estava muito grata por ter o privilégio da escolha, de ter acesso aos comprimidos para abortar, poder pagar por eles, poder ir ao médico verificar se estava tudo bem depois, ter o companheiro ao meu lado, ter amigos, ter conhecimento o suficiente para não achar que eu estava matando uma vida etc. Mas mesmo assim, me sentia estranha, desconectada com meu corpo, menos mulher, menos feminina.
Depois do aborto, desenvolvi depressão. Larguei meu emprego, me desfiz de 80% das minhas roupas, livros, discos. Quem eu havia sido até então não era mais suficiente para mim. Optei por abrir um negócio, queria provar pra mim que podia cuidar de algo, que eu conseguia me responsabilizar por alguma coisa além da minha própria vida. Achava que isso resolveria minha tristeza, desânimo e descontentamento com quem eu era.
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Não abria pras pessoas essa tristeza profunda que havia tomado conta de mim após o aborto. Se eu estava muito quieta, apática, podia culpar o negócio recém-aberto. Não queria que achassem que eu estava arrependida, pois não estava.
Fui perdendo o interesse por cada coisa que importava pra mim: amigos, família, comida, meu próprio corpo, meu próprio ciclo, meu companheiro. Passei a me achar uma pessoa vazia, feia, chata, inapropriada para convivência, incapaz.
Sabia que eu devia procurar ajuda, mas a vida me consumia. Sempre existia outra prioridade, e assim, um ano inteiro se passou, até que resolvi que devia me reerguer. Primeiro tentei sozinha, aos poucos, voltar a me alimentar bem, me exercitar; mas não foi o suficiente, apesar de aparentemente estar bem, na minha solidão, pensava em suicídio.
Estou há dois meses na terapia. Estou em um processo de redescobrimento da minha feminilidade e do meu corpo; aceitação da minha fragilidade e do trauma do aborto. Por muito tempo não conseguia admitir que havia sido traumático, mas passar por essa experiência (de abortar) é um processo envolto por muitas emoções, tabus, crenças etc.
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Tudo bem ficar mal, amiga. Tudo bem ficar triste. Tudo bem não entender direito suas emoções. Apenas chore quando precisar, desabe quando precisar, mas tenha clareza para admitir as coisas e força pra se reerguer depois.
Não esconda sua tristeza, muito menos não fale sobre isso por medo do que pensarão de você. Eu tive o pior ano da minha vida, por medo de admitir que abortar não era tão sussa como eu gostava de militar por aí.”
O Divã de hoje é anônimo porque aborto ainda é crime no Brasil.
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