A Revista AzMina está publicando toda quarta-feira conteúdos e reportagens investigativas da série especial sobre o Lobby Antiaborto no Brasil. Esse divã faz parte da série e busca mostrar os impactos humanos dessa frente ampla que desinforma e manipula para retroceder nos direitos reprodutivos. AzMina recebe relatos voluntários de pessoas que nos leem e nos escrevem para desabafar pois abortaram nos mais variados contextos, enfrentando desafios em um país que restringe o acesso à saúde e ao aborto previsto em lei.” Veja a seguir mais um desses depoimentos inéditos:
“Meu caso aconteceu em 2022, um ano depois eu consegui escrever. Ainda é algo muito vivo para mim. Escrevi todos os detalhes que pude para que, uma vez no papel, parassem de doer dentro de mim de alguma forma. Ainda dói pensar que tive que sobreviver. Que não tenho um país que me protege e me acolhe. Mas traz um pouco de alívio saber que existem mulheres que lutam anonimamente por mim, por nós, e uma dessas meninas anônimas esteve comigo do começo ao fim. Eu não sei quem é ela, não sei como ela se chama ou que rosto tem. Mas eu lembro de sua voz tranquila que disse: não me importa o que você fez, só me importa você. Você é mais importante que um embrião. Segue o meu relato escrito em terceira pessoa:
Você é mais importante que um embrião
As férias do final do ano ajudaram muito, pois ela não conseguiria preparar as aulas, atender alunos, ensinar, sabendo que em seu ventre havia um relógio tiquetaqueando. Estar de férias permitia que todas as suas energias estivessem voltadas para sobreviver ao caos.
Sobreviver, aliás, era uma das dúvidas que percorria sua mente. Não sabia se passaria mal, se seu corpo responderia à medicação positivamente e conseguiria um final tranquilo e sem hospitais. Ela não imaginava esse desfecho quando, após terminar o mesmo relacionamento pela terceira vez, decidiu viver a perda nos braços de outros e entrou num aplicativo de relacionamentos.
Menos de uma semana depois do término, estava a caminho da cidade de um dos homens mais bonitos que já tinha visto em sua vida. Se hospedou num hotel com algumas amigas, que estariam por perto para protegê-la. Foi um encontro agradável, divertido e ela voltou para o hotel acompanhada de W., que continuou mostrando um enorme interesse por aquela mulher mais velha.
Ele se fez presente com mensagens diárias, ligações, corações e carinhos. Ia até a cidade dela para almoçarem juntos, faziam planos – mais ele do que ela –, e mesmo achando tudo distante do que estava acostumada, era gostoso se sentir desejada por alguém tão alto, bonito, de sorriso largo e abraço tão apertado.
Após momentos de beijos e carícias, ela disse: ‘eu busco as camisinhas bem rápido’, mas ele a segurou e prometeu gozar fora, além disso, ela decidiu tomar pílula do dia seguinte. Assim fizeram!
“Eu gozei fora”
As mensagens carinhosas continuaram e algumas semanas depois, ele convidou: ‘passe o dia comigo e com minha família e amigos’. Como a menstruação estava atrasada, ela contou a ele, que não demonstrou qualquer preocupação: ‘fique tranquila! Você tomou a pílula, eu gozei fora’. Ela tentou relaxar, mas algo dizia que seu corpo não estava como algumas semanas antes.
Talvez tenha sido o sono gigantesco que passou a pesar seus dias. Também lembrou do cansaço descomunal que sentia enquanto estava acordada, mesmo passando o dia todo sem fazer qualquer esforço. Ah, e também tinha as mamas doloridas como nunca! Seu corpo passou a ser um fardo pesado que tinha que arrastar vagarosamente durante todo o dia.
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Em 27 de dezembro, levantou muito cedo e tentou se acalmar. Foi à farmácia e comprou logo dois testes. Chegou em casa e foi direto para o banheiro. Percebia que tremia! Assim que fechou a caneta, o sinal apareceu grande e azul forte. Estava grávida.
Já não sentia mais o chão.
A decisão de abortar já havia sido tomada desde sempre. Ela nunca se imaginou mãe e muito menos engravidar, parir, criar. Sentia-se completamente perdida e fazia um esforço hercúleo para pensar racionalmente e não perder mais tempo. Ela lembrou de uma cena onde alguém lhe dizia que se algum dia precisasse fazer um aborto, poderia procurá-lo. Quem era? Era um homem, certamente não era um amigo hétero.
Pegou o celular tremendo e, digitou uma mensagem desesperada ao amigo P. Ele ligou imediatamente. Com sua voz calma, cheia de amor e paciência, encheu aquela mulher de afeto. Ele explicou que, uma vez tomada a decisão de interromper, ela tinha duas escolhas: clínica ou medicamentos. A clínica era uma fortuna e a cada semana de gestação o valor aumentava bruscamente.
Ele contou a experiência negativa que uma conhecida teve com os medicamentos e foi essa conhecida que conseguiu o contato de uma clínica em São Paulo e a frase código que ela deveria usar quando alguém atendesse o telefone. No dia seguinte, bem cedo, ela ligou para a clínica.
Ela arcaria com tudo sozinha
Se ela conseguisse chegar em São Paulo logo após o ano novo, gastaria R$ 5 mil porque ainda estava nas primeiras 4 semanas. A cada semana que deixasse passar, teria um acréscimo de R$ 1 mil. Além da clínica, gastaria com transporte e hotel. Ligou para W. para avisá-lo que viajariam dentro de três dias e passou os custos que seriam divididos em dois entre eles. É claro que ele deveria ser a pessoa a acompanhá-la.
Na ligação ela se esforçava para soar determinada e já dizia quais seriam os próximos passos, tentando ser prática e racional. Ele tentava demonstrar uma tristeza, evidentemente falsa, e já colocava diversos empecilhos financeiros para acompanhá-la e dividir o custo da tal cirurgia. Ele disse que era contra matar seu ‘próprio filho’. Ela se deu conta de que teria que arcar com tudo sozinha. Ligou para sua amiga C., que morava numa cidade próxima e imediatamente acolheu, sem fazer qualquer pergunta.
Quando se viu presa nessa situação única, ela aprendeu que certas coisas só podem ser vividas e vencidas com outras mulheres. Ela sabia que enfrentar uma clínica de aborto era a coisa mais arriscada da sua vida, mas os relatos assustadores de mulheres que tinham abortado com medicamentos a deixavam muito preocupada. Tinha muito medo da dor e de uma hemorragia descontrolada que a levaria para um hospital, mas acima de tudo, temia a terrível possibilidade dos remédios não funcionarem e ela continuar grávida.
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Não tinha muito conhecimento sobre o que era o aborto e como seu corpo reagiria. Poderia ser presa. Constantemente, se imaginava sendo carregada para fora de um hospital por policiais, enquanto sangrava numa maca, deixando para trás médicos e enfermeiras raivosas e com a sensação de trabalho cumprido. Será que a clínica era mesmo a melhor decisão?
Seu anjo P. havia enviado uma cartilha feita por um grupo de mulheres. Quando leu a cartilha se sentiu um pouco mais confiante em fazer o procedimento com medicação, assim como acontecia nos países onde o aborto era um direito protegido e garantido pelo Estado. Decidiu conversar com outra mulher. Foram almoçar juntas e ela não conseguiu esperar até chegarem ao carro para contar: ‘estou grávida’.
Acolhida de outra mulheres
Mesmo diante de uma notícia completamente inesperada, a amiga calmamente perguntou: ‘e o que você quer fazer sobre isso?’. Ao ouvir a resposta, ela sorriu e disse já ter passado por um aborto com medicamentos. Havia sido num país onde as mulheres podem decidir e teve o acompanhamento de profissionais. Sua experiência havia sido um pouco dolorida, sim, mas sem qualquer trauma. Saber da experiência de outra mulher foi o que faltava para enchê-la de coragem e decidir pelos remédios.
Comprar os remédios não seria tão fácil assim. Após alguns contatos ela conseguiu fechar a compra de um dos remédios. Quando recebeu as instruções, nada parecia com o escrito na cartilha. O procedimento era horrível!
Naquela noite, outro contato respondeu! Alguém muito mais preparada estava por trás daquela mensagem que começava dizendo que elas estariam ali para ajudar e acolher. Que enviariam OS REMÉDIOS (os dois, como na cartilha!) sem nenhum custo porque as mulheres que podiam pagar, pagavam por aquelas que não podiam pagar. Eram as “meninas da ONG” que a guiariam de acordo com o procedimento da OMS (Organização Mundial de Saúde), usado pelos países onde o aborto era seguro e legalizado. A única exigência era um ultrassom.
A pessoa pediu o seu celular e entrou em contato rapidamente. Assim que atendeu o celular, ela começou a dizer que não era irresponsável e havia feito o que podia para evitar. A voz da mulher do outro lado apenas disse: ‘Você é mais importante que o embrião. Você existe antes de um embrião.’
Ela agendou a ultrassonografia que pagaria do seu bolso. O médico entrou sério e ela avisou: ‘Não quero ouvir o coração’. As meninas do email haviam dito que ela tinha esse direito garantido por lei, mas o médico ignorou e a obrigou a ouvir.
Sensação de alívio
Os remédios demorariam alguns dias para chegar, esses dias seriam usados para ler a cartilha e decorar tudo para que soubesse o que fazer quando chegasse a hora. Tinha que saber o que era normal, sentir ou se precisaria chamar uma ambulância, também saber o que falar para os médicos e enfermeiros. Os dias passavam devagar e pesados como se estivessem em câmera lenta.
Os Correios avisaram que seu pacote estava a caminho. Sabia que o carteiro chamaria o nome falso. As meninas da ONG disseram que se a polícia chegasse com o pacote ela poderia dizer que aquele destinatário não era ela e ela estaria segura.
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Entrou em contato com as meninas da ONG e avisou que tinha todos os remédios em mãos. Foi instruída a tomar o primeiro comprimido imediatamente e aguardar 48 horas para iniciar a próxima etapa. Precisaria da companhia e apoio de sua amiga e sabia que sentiria dor, sangraria e corria o risco de precisar de médicos e hospitais. Isso era o que mais temia.
Assim que tomou o comprimido sentiu uma sensação de tranquilidade que tomava seu corpo e sua mente. Havia começado o seu processo de liberdade. Na última conversa que teve com W. sobre o aborto, ela usou seu lado prático e o questionou sobre a logística que ele adotaria na vida após ter um filho, pedindo detalhes. Ele se calou. Não conseguia responder porque não passava por sua cabeça que a criança afetaria todos os aspectos da sua vida. E ele não ligou mais.
Colocou os comprimidos embaixo da língua, como descrito na cartilha, e se acomodou na cama. Na cartilha dizia que se sentisse náusea antes de engolir todo o comprimido, que ficaria dissolvendo embaixo de sua língua por até trinta minutos, correria o risco de não ter o final desejado.
Uma cartilha de apoio
Sabia de cor todos os passos descritos na cartilha. Era um conforto não estar completamente ignorante diante de uma situação tão arriscada. Começou a sentir calafrios. Sabia que a seguir viria a dor. Como seria essa dor?
Era quase insuportável vomitar tantas vezes seguidas. Sem nada para expulsar, seu corpo foi tomado por uma avalanche de dor. Mal podia respirar! Sem fazer muito esforço mental, pois não tinha forças para isso, lembrou-se que a cartilha trazia uma dica para suportar a dor: ficar deitada embaixo de uma ducha morna.
A única coisa que a mantinha consciente e ligada a este mundo eram os olhos de sua amiga de pé na porta do banheiro. Ela passava alguma segurança quando repetia que estava tudo bem, era isso que ia acontecer.
Foi no auge da dor, sentada no vaso nua, que sentiu algo escorregar de dentro dela. Ela olhou para M. ainda de pé na porta do banheiro e disse: ‘acabou’. Seu corpo foi inundado por um alívio indescritível. O embrião saiu inteiro e limpo. Instintivamente, tentou tirá-lo de dentro do vaso com sua mão, queria tocar naquilo, mas M., apertou a descarga.
Depois veio o sangue e era muito, jorrava de dentro dela. Pela manhã tomou um longo banho morno e libertador. Tinha certeza que estava livre, não era mais uma refém. Quarenta dias depois fez outra ultrassonografia. A primeira coisa que a médica perguntou foi se era um ultrassom pós gravidez. Sem encarar a médica, ela repetia o que havia treinado: ‘é apenas rotina.’
Humanas
Durante as primeiras semanas, ela se encheu de uma vontade enorme de contar para todas as mulheres o que tinha acontecido. Queria que elas soubessem que não estavam sozinhas. Compartilhou sua experiência com as mulheres mais próximas e se colocou à disposição. Enviou a cartilha para todas as mulheres que podia.
A excitação de ter sobrevivido e aquela sensação de poder e liberdade foram substituídas pela vontade de ficar encolhida em um ninho. Percebeu que havia carregado o mundo nas costas e dentro de si, estava exausta emocionalmente.
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Vivia em um mundo onde a sua vontade enquanto mulher não existia para a sociedade. Mesmo sabendo que a racionalidade estava do seu lado, em algum canto escondido e sombrio de sua existência, a culpa lhe atormentava.
Entrou em contato com as meninas da ONG e fez a sua contribuição. Cortou todos os laços com W., não queria vê-lo nunca mais. Queria apenas suas amigas por perto. Espero que um dia ainda tenhamos um país que respeite as mulheres como seres humanos.