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26 de setembro de 2019

“Mesmo usando anticoncepcional, engravidei e fiz um aborto”

O Divã de hoje é anônimo porque aborto ainda é crime no Brasil

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“Eu fiz um aborto em clínica.

Antes de começar a ler meu depoimento é importante saber que eu sou uma pessoa cheia de privilégios: tive acesso a uma ótima educação, sou branca, moro num bairro central e sou da classe média. Basicamente todas as facilidades que eu poderia ter, eu tive. Isso é importante para entender minha história.

Meus pais sempre falaram comigo abertamente sobre sexo, camisinha, DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) e tudo mais. Desde a adolescência eu faço consultas e exames regulares em ginecologistas particulares ou do convênio. E como a maioria das mulheres que eu conheço, a pílula entrou na minha vida bem cedo – com cerca de 14 anos.

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Meu ciclo menstrual era irregular, eu tinha muito fluxo por vários dias, sintomas de TPM e um suposto ovário policístico. Além disso – o que ninguém falou, mas devia estar na cabeça de todos – em pouco tempo eu teria uma vida sexual ativa, então era mais seguro já me acostumar com essa nova rotina antes.

Aos 17 anos decidi trocar a pílula oral por um implante hormonal subcutâneo: um pequeno pedaço de plástico, mais ou menos da espessura de uma carga de caneta esferográfica. O implante funciona, mais ou menos, como uma pílula oral sem pausa, mas com a vantagem de não ter perigo de esquecer de tomar.

Cada implante tem validade de três anos e eu coloquei três consecutivos. Ao todo foram quase dez anos usando esse método. À princípio eu me dei muito bem com o implante: me sentia muito segura com ele e adorava não menstruar! Com esse implante a maioria das mulheres têm apenas escapes: o corpo libera um pouco de sangue, mas tecnicamente não é uma menstruação, já que neste caso não existe um ciclo hormonal natural.

Durante esses anos eu nunca notei nenhum efeito colateral, mas o que eu não sabia era que justamente o que eu não notava é que seria um problema. E olha só, eu não vou fazer propaganda contra o implante ou nenhum outro método hormonal. Mas pense que aos 28 anos eu tinha passado metade da minha vida sob o efeito de hormônios, sem nem saber como funcionava um ciclo menstrual normal no meu corpo. Não acho que tive a chance de tomar uma decisão realmente bem informada.

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Esses três primeiros eu coloquei com a mesma ginecologista. Mas na hora de colocar meu quarto implante, em 2015, eu precisei procurar um novo médico. O procedimento foi como os outros, mas eu achei estranho quando apalpei meu braço e não consegui sentir o implante. Falei isso para o médico e ele me garantiu que estava tudo certo e não pediu nenhum exame para confirmar. Disse que o implante tinha apenas sido colocado mais fundo do que o normal.

Nos dois anos seguintes eu tive algumas relações casuais, mas sempre usei camisinha – até porque o implante não protege contra DSTs. Mas em 2017 comecei a namorar. Depois de um tempo, conversamos, fizemos exames de sangue e decidimos parar de usar camisinha.

Cerca de dois meses depois eu fui ao médico fazer meu check up anual. Durante o exame a médica disse que tinha um “conteúdo” no meu útero, mas como eu usava implante provavelmente era só um acúmulo de líquido, o que é normal. Ela sugeriu que eu fizesse um teste de farmácia só para excluir a possibilidade de uma gravidez. Eu fiz o teste bem tranquila e senti o um buraco se abrindo sob os meus pés quando vi o resultado: positivo.

É difícil de explicar, mas naquele segundo as minhas decisões começaram a pesar em dobro. Eu não estava nesse relacionamento há tanto tempo assim e uma coisa era me arriscar a ter um coração partido ou me envolver com uma pessoa horrível: são apostas que faço para mim mesma. Mas com aquele exame positivo nas mãos eu estaria assumindo esse risco por outra pessoa também. Uma pessoa que ainda nem existia.

Sozinha em casa, sentada no chão do banheiro, calculando todos os cenários possíveis, eu só tinha uma coisa muito clara na minha cabeça: eu nunca tive o desejo de ser mãe. E isso não tinha mudado.

Conversei com o meu namorado da época, ele também não queria ter o filho e topou dividir o custo do aborto (mais privilégios). Eu pesquisei sobre as opções e achei que fazer o procedimento de curetagem, um aborto em clínica, seria a melhor opção para mim.

Hoje eu sei muito mais sobre como funciona o aborto com remédio e acho que teria sido melhor, mas na hora não achei nenhuma informação segura sobre onde conseguir os remédios e achei arriscado demais.

Consegui o contato de um médico, agendei uma consulta e, nessa consulta, já marquei a data do procedimento. 

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Aqui preciso parar e fazer uma observação: eu ainda não tinha notado, mas estava em um relacionamento abusivo. Durante os quatro meses que estávamos juntos até então, meu namorado, dez anos mais velho que eu, conseguia me manipular e me fazer sentir sempre culpada, de forma que qualquer assunto que discordássemos acabava virando uma briga. E a briga acabava com ele me deixando dias “na geladeira” e eu me desculpando. SEMPRE.

O segredo da gravidez acabou sendo mais uma dessas situações. Ele não queria que ninguém soubesse, mas também não queria conversar comigo sobre o assunto. O tabu era tanto que eu acabei me sentindo muito isolada.

O procedimento em si foi a parte mais simples do processo. Fui muito bem atendida. A clínica parecia um hotel, tudo muito limpo, discreto e organizado. A enfermeira foi carinhosa comigo enquanto a anestesia me apagou completamente. Em cerca de 15 minutos eu estava de volta ao quarto. Tive um sangramento e cólica leves no dia seguinte, mas tudo muito tranquilo.

Lembra que eu falei sobre os meus privilégios? 5 mil reais à vista e em dinheiro pagaram esse tratamento cinco estrelas de um aborto em clínica, a sensação de segurança, o médico competente e a enfermeira gentil. Não é uma quantia fácil de tirar do bolso para a maioria das mulheres do país.

Depois do aborto, eu passei meses tentando descobrir porque eu tinha engravidado usando implante, um método com eficácia de 99,97%. Só depois de muitas consultas, telefonemas, hipóteses e exames eu descobri que, na verdade, esse quarto implante nunca foi colocado. Quando apalpei meu braço e não senti nada a minha preocupação estava certa. Quando o médico me garantiu que tudo tinha corrido bem e não pediu nenhum exame, ele estava sendo negligente.

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Hoje fico pensando que se eu pudesse ter falado com mais pessoas, ou tivesse acesso a mais informação, se pudesse ter acionado o médico junto ao Conselho Regional de Medicina (CRM) sem medo de represália, se eu tivesse suporte, talvez não tivesse ficado depressiva.

Todo o processo até essa descoberta foi difícil e cheio de má vontade de todos ao redor. Isso acabou comigo. Eu me sentia invadida, sobrecarregada, insegura e muito, muito solitária. Entrei numa das piores crises depressivas da minha vida, que durou mais de um ano.

A decisão de abortar não foi leve, nem fácil. Mas sei que fiz a escolha certa, a escolha mais responsável. Não só pra mim. É muito dolorido pensar no quanto isso é injusto. Como os conservadores falam do “trauma do aborto”, mas o mais traumático é justamente a proibição e as consequências dele.”

O Divã de hoje é anônimo porque aborto ainda é crime no Brasil.


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