*Alerta: esse texto contém descrição de um crime de violência contra a mulher
Eu cresci em um ambiente familiar extremamente violento, de agressões do meu pai contra a minha mãe. Então, quando namorei essa pessoa, que era meu ex-namorado, eu não conseguia identificar os sinais de violência. Eu estou falando de 24 anos atrás, quando ainda não tinha a Lei Maria da Penha, e o feminicídio não era um termo legal, não existia nem o estatuto da pessoa com deficiência. Não havia toda essa amplitude de leis e conhecimentos, conteúdos e informações que temos hoje.
Meu nome é Carol Santos, sou feminista e sobrevivente de uma tentativa de feminicídio no ano 2000, quando me tornei uma mulher com deficiência. Sou uma ativista que luta muito pela questão da violência contra todas as mulheres, no plural porque atinge todas as mulheres. Mãe, sou fundadora do Movimento Feminista Inclusivass do Estado do Rio Grande do Sul.
O que aconteceu comigo foi muito noticiado, porque naquela época era uma coisa assim: “uma jovem levou um tiro, o namorado morreu e o ex-namorado suicidou”, sabe aquela coisa tão assim (…) midiática?
Eu não identifiquei os sinais que ele dava pra mim naquela época, porque entendia como cuidado e proteção. Só que aquilo foi sufocando, eu sempre fui uma mulher muito independente, até da minha família, pois comecei a trabalhar muito cedo.
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“Não conseguia reconhecer a violência”
Eu gostava de ter a minha independência, autonomia, de me sentir livre. E aí conhecendo essa pessoa, me aproximei em função de um relacionamento ruim anterior, o qual sofri muito. Aquela coisa de buscar refúgio, e foi nele que acabei me perdendo. Ele era mais jovem do que eu, eu tinha 18, ele, 16.
Fui o primeiro “amor” da vida dele. Até que ele começou a me controlar: a roupa, a maquiagem, me buscava na parada de ônibus. Ele ficava observando se os caras não ficavam me olhando. Ninguém podia ir a minha casa. Quando a minha mãe levava um amigo, ele ficava controlando, indo atrás de mim. Eu mexia, ele tava me acompanhando.
Isso que aparentemente se vê como cuidado, eu fui me dando conta que estava me fazendo mal e comecei a ter nojo. E aí nesse meio tempo, eu acabei conhecendo um rapaz no trabalho, o Marcelo (nome que consigo pronunciar). Ele se aproximou de mim como amigo. Foi se aproximando cada vez mais, só que ele não tinha aquela coisa que eu tinha em casa, nem controle, nem obsessão. Tinha uma amizade verdadeira, e eu já estava no limite do relacionamento com o outro, resolvi terminar.
Fiz a coisa certa, para ninguém se magoar, terminei com o ex, para começar a namorar o Marcelo e seguir nossa vida. Mas eu só consegui viver essa nova relação quatro dias. Até que o ex planejou todo o crime. Só que ele não sabia que, quando chegasse lá, o Marcelo estaria comigo. Ele foi à casa do pai dele, pegou a arma, deixou carta de despedida para minha mãe e para os pais dele. Levei um tiro pelas costas pela janela, ele atirou quando corri.
Ele achou que eu estava morta, assassinou meu namorado e em seguida suicidou. Todas as mulheres carregam uma culpabilização, a de ser mãe ou não, de não dar conta, de tá sobrecarregada. Falo desse lugar também e eu não conseguia reconhecer a violência.
Lembro que depois do crime, a polícia me perguntou se eu queria processar o pai do meu ex, porque como a arma era do pai, e ele era menor, automaticamente o pai respondia. Eu era tão inocente que eu disse que não. Se é hoje, digo sim, porque desde os 7 anos ele sabia atirar, o pai era caçador, levava ele junto para caçar.
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Dar o primeiro passo
Levei seis anos para sair de dentro de casa depois do crime. Tinha medo da rua. Tinha medo da cadeira de rodas, do mundo, de recomeçar, mas eu queria e precisava. Demorei a criar coragem, mas quando dei o primeiro passo, os outros vieram.
Comecei a me movimentar. Fiz um blog, porque eu senti essa necessidade de compartilhar sobre a estrutura capacitista enquanto mulher cadeirante. Como eu sempre fui muito de falar, geminiana fala, né? Tinha muita coisa presa em mim que eu precisava gritar e gritar pelas mulheres com deficiência.
O feminismo me libertou no momento em que eu me sentia perdida, hoje me vejo uma mulher sobrevivente, e por isso comecei a escrever, mas, até então, a minha luta era falar de acessibilidade e de inclusão, do ônibus adaptado, da escola, da rampa. Meu envolvimento com o feminismo foi depois de um flash Mob, nos 21 dias de ativismo contra a violência de gênero, na praça da Redenção, foco das feministas e do movimento de mulheres aqui de Porto Alegre.
Escrevi um poema, participei das conversas e atividades sobre, me engajei. Nesta atividade conheci a Telia Negrão, fundadora do Coletivo Feminino Plural. Este dia marca meu renascer porque naquele dia entendi que não era culpada de nada. A culpa me acompanhou por 13 anos da minha vida.
Eu me sentia culpada da violência sofrida e de tudo que aconteceu naquele dia. Mas ali no coletivo foi nascendo a mulher feminista que sou hoje e a ativista, ao participar com a força daquelas mulheres. Todas elas gritando pelo fim da violência, eu me reconheci naquele lugar de fala e de luta.
Neste período engravidei do meu primeiro filho e precisei dar uma pausa, até retomar as atividades. Em 2015 foi gravado o filme “Carol”, pela cineasta Mirela Kruel, conta minha história de vida e tem sido um material importante no enfrentamento a violência contra as mulheres, com premiações e participações em festivais e projetos no país e fora.
Atualmente tenho coordenado projetos voltados ao tema da violência contra mulheres com deficiência e desde 2021 as Inclussivass estão trabalhando de maneira inovadora sobre o tema das sobreviventes de feminicídio numa perspectiva de criar um projeto de lei de políticas de cuidado para as sobreviventes. O Projeto Histórias Contadas tem apoio do Fundo Elas +, e deste projeto estamos construindo um livro com histórias de sobreviventes de feminicídio. Algo que será inédito no país. O livro terá apoio de grandes lideranças feministas do país, entre elas a escritora e filosofa Marcia Tiburi.
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Força coletiva e governo presente
O Coletivo Feminino Plural me convidou para levar a questão da agenda feminista das mulheres com deficiência e fundamos um movimento para ajudar outras mulheres com deficiência a terem seus direitos humanos garantidos. A minha mãe passou por isso e não conseguiu romper durante muito tempo. Isso me impactou também na minha vida, na minha infância. Várias mulheres passam, não é só um caso individual.
Faltou recurso, orientação e conhecimento sofre violência contra as mulheres. Fico tentando pensar hoje em dia que a gente já tem um pouquinho mais de informação, mas ainda assim muitas mulheres não conseguem sair dessa situação de violência por muitos medos, de perder os patrimônios e os filhos.
O Estado tem falhado, é difícil se a mulher não tiver uma rede de apoio e se os governos não garantem nada quando ela sai de dentro de casa: seja uma casa abrigo, para acolher por um período, incluir essa mulher no mercado de trabalho, fazer alguma formação. Romper o ciclo da violência é um problema social.
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A gente também precisa de ajuda, porque não adianta a mulher querer sair da situação de violência e o Estado e suas políticas não garantirem isso. Está aí a cultura machista, né? Então isso tudo acaba atrapalhando.
Os movimentos de mulheres têm feito muito mais do que o Estado. Mas, nós, mulheres, o maior eleitorado do país, também temos que agir. Escolhamos mulheres para nos representar e mudar isso.
Existe saída para violência, nós não estamos sozinhas. Enquanto houver força e união entre as mulheres, nós nunca estaremos. Se puder, denuncie. Vale lembrar que a luta só é válida com uma perspectiva interseccional. Se a liberdade não for para todas, a gente tá falhando, e grave, enquanto movimento feminista.
*A produtora de jornalismo d’AzMina Ester Pinheiro entrevistou Carol Santos para construir este texto em primeira pessoa.