No filme Marte Um, que retrata o cotidiano de uma família negra da periferia de Belo Horizonte, a história da mãe, Tércia, chama atenção pelo silêncio. Interpretada por Rejane Faria, a personagem trabalha fora como faxineira, e em casa como principal cuidadora do lar.
Um dia, Tércia cai em uma “pegadinha” de um programa de TV. Desse atentado falso surge um trauma real: crises de ansiedade e pânico para as quais todos fecham os olhos – a família, os patrões, a saúde pública. Sem tratamento psicológico ou psiquiátrico, resta é seguir em frente do jeito que dá. Ainda que o jeito que dá seja muito ruim.
A pequena tragédia de Tércia ilustra a percepção de quem trabalha com jornalismo feminista, pesquisa de gênero, faz parte de movimentos sociais e/ou é uma mulher racializada vivendo no Brasil desde 2016. Tava ruim, mas parece que piorou – tudo agravado pelo assassinato de Marielle Franco e pela eleição do inelegível.
Há muitas críticas que podem e devem ser feitas a Lula, da escolha do vice à declaração pública de ser contra o aborto. Ainda durante a campanha eleitoral ficou nítido que, em nome das alianças e governabilidade, os direitos das mulheres são os primeiros a ser rifados. Contudo, desde a eleição do ano passado, havia alguma esperança no ar. Não só que pudéssemos comer melhor, mas viver melhor.
Vencemos (?) a eleição, mas nem a subida espetaculosa da rampa do palácio nem o ministério relativamente progressista foram suficientes para aliviar esse aperto no peito. Como a Tércia, seguimos, do jeito que dá. Sem aguentar mais, mas aguentando.
Escolhas
Diversos intelectuais brasileiros tentam explicar o afastamento dos eleitores dos partidos de esquerda por meio da questão da segurança pública. A esquerda não estaria propondo um plano efetivo de combate à criminalidade. O cidadão vítima da violência urbana seria seduzido pelo fascismo por falta de alternativa. Mas isso cai por terra quando, na ocasião do assassinato de um adolescente, o Presidente da República diz que a polícia precisa saber diferenciar pobre de bandido.
A hipótese da falta de um plano para a segurança pública funciona como uma desculpa conveniente para problemas não restritos aos partidos ditos de esquerda e requerem enfrentamentos mais radicais, como desmilitarização das polícias, o fim da guerra às drogas e políticas de desencarceramento. No momento, estamos na contramão disso, armando as guardas municipais e ampliando o leque das criminalizações.
Não é possível qualquer radicalidade quando você tira uma mulher de um ministério para que seu cargo seja oferecido ao Centrão, deita pras igrejas evangélicas mesmo antes de ter sido eleito, e tem como vice alguém que não tem exatamente um bom histórico de diálogo com professores e estudantes em greve. O mesmo que ao ser perguntado sobre uma chacina respondeu “quem não reagiu está vivo”. Isso não significa que as discussões sobre a elaboração da política deva ser encerrada em nome de um suposto pragmatismo que, para fazer “o Brasil feliz de novo”, deixa as coisas exatamente como são.
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Governante não é ídolo, é um funcionário público a ser cobrado. Se não tem cobrança não avançamos e seguimos reféns do presidencialismo de coalizão. Se celebramos os acertos, como a redução no preço dos alimentos, dos combustíveis, e os acordos diplomáticos que colocaram o Brasil de volta num bom lugar no cenário internacional, precisamos ter liberdade para falar sobre pontos fracos da gestão, sem sermos acusados de “fogo amigo”.
Para ter uma conversa séria sobre segurança pública, é necessário lembrar que não faltou à esquerda um plano de segurança pública nos anos Lula/Dilma. Esse plano existia e esteve em prática durante esses governos no âmbito federal. Na esfera estadual, os governadores de partidos de esquerda não propuseram nada diferente da tradicional atuação da PM, que é subordinada aos governadores.
A esquerda não deixou de lado a política de segurança. Ela fez uma opção. Os “casos isolados” são fruto dessa escolha política. Mas o interessante das escolhas políticas é que elas estão sempre em movimento. Por isso, diante da insistência das mortes em operações policiais – inclusive de crianças – urge uma nova abordagem, uma política de segurança que ultrapasse o discurso de endurecimento das penalidades, mas considere as próprias forças de segurança.
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É preciso pautar a desmilitarização das polícias e uma ampla descriminalização das drogas. Descriminalizar a posse é muito pouco sem um plano de desencarceramento. Desde a aprovação da atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que instituiu o sistema de políticas públicas sobre drogas no Brasil, o país vive a explosão do encarceramento. De um lado a guerra às drogas produz encarceramento em massa; de outro, aquilo que o ativista estadunidense William C. Anderson chama de mortes por execução pública nas periferias e favelas.
O encarceramento em massa que se desenvolveu desde os anos 2000 atingiu com particular intensidade as mulheres, especialmente pretas e pardas (62%). Em 2016, quase metade das mais de 42 mil mulheres presas no Brasil (45%) não haviam sido julgadas. Em 2022, o Brasil já tinha uma população carcerária feminina de 49 mil pessoas; o maior número da história do Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Assim como os homens, a maioria está presa por delitos relacionados a drogas. Muitas são mães, estão grávidas ou amamentam.
A questão das mulheres negras não pode ser tratada como uma querela
Em julho, o programa Greg News fez um resumo das decisões ultraconservadoras de Cristiano Zanin em um mês como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A ideia era pressionar pela nomeação de uma mulher negra e progressista para a corte. Seria um feito inédito, capaz de mudar decisões relativas à política de drogas e encarceramento, que contribuem o estado permanente de tensão em que vivem brasileiras negras e periféricas.
Evidentemente, a mobilização pela nomeação de uma ministra negra no STF não foi inventada pelo programa da HBO. A lista tríplice de juristas negras mencionada por Gregório Duvivier foi elaborada pelo movimento Mulheres Negras Decidem e endossada por figuras públicas proeminentes e organizações da sociedade civil. Entretanto, para certa imprensa governista, a vaga de Rosa Weber deve ser preenchida por alguém da confiança do presidente, para protegê-lo numa eventual tentativa de golpe.
Nem vou entrar na discussão sobre o conceito de confiável ser sinônimo de homem branco. Ou como essa falsa dicotomia entre o pragmatismo político e questões identitárias tende a desqualificar problemas concretos. Passamos quatro anos ouvindo que não era o momento de criticar Lula e a esquerda, porque isso “fortaleceria o fascismo” e eu francamente não aguento mais explicar que o que fortalece o fascismo não é a cobrança por coerência, e sim o silêncio diante das injustiças.
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Longe de ser uma querela, a campanha por uma ministra negra progressista para o STF – ênfase em progressista, porque há conservadores de todas as etnias e identidades de gênero – está afinada com os valores defendidos pela frente super ampla que elegeu Lula, que assumiu reiterando um compromisso de governar para todo o Brasil. Mulheres pretas e pardas não podem mais ser vistas apenas como votos. Desde a campanha, Lula tem feito escolhas pragmáticas. É hora de fazer uma por princípios.
Apesar do número de parlamentares autodeclaradas negras ter dobrado de 2018 para 2022, o número de representantes no Legislativo ainda é pequeno: 14 senadoras (de 81 cadeiras) e 29 deputadas (de 513). Do mesmo modo, aumentou o número de ministras negras em relação aos governos passados, ainda somos minoria. Queremos mais.
A presença de uma mulher negra progressista na mais alta corte coloca uma outra perspectiva para o enfrentamento de problemas que, via de regra, atingem a carne mais barata do mercado. Uma perspectiva que os homens brancos podem deixar escapar em meio a pedidos de vista e destaque, ainda que estejam bem intencionados. Seria um alento para o aperto no peito de todas as Tércias deste Brasil. Foi pra isso que fizemos o L.