Já tem um tempinho que no aniversário da assinatura da Lei Áurea vem à tona o debate sobre a falsa abolição e os motivos pelos quais não se deveria celebrar o dia 13 de maio. Para alguns essa data tiraria o protagonismo das pessoas negras que se empenharam no movimento abolicionista, dando destaque para a princesa Isabel.
Como foi frisado no excelente podcast Projeto Querino, não existe uma história do Brasil sem o povo preto, especialmente quando falamos desse assunto que nos toca com tanta intensidade. Por isso, para avançar no debate é importante lembrar que para além de uma disputa pelo protagonismo, é necessário mostrar que a escravidão no Brasil nunca acabou.
Não se trata de uma metáfora para a exploração trabalhista, mas de uma realidade que atinge milhares de pessoas. Todos os anos e em todo o Brasil são resgatadas pessoas em trabalho análogo à escravidão, entre empregadas domésticas como a idosa que ficou nessa situação por 7 décadas, imigrantes costureiras exploradas pelo setor da moda e trabalhadores rurais.
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Gênero na escravidão contemporânea
A escravidão contemporânea ocorre clandestinamente, diferente da anterior, que era um negócio legalizado. Como no passado, mulheres em situação análoga à escravidão trabalham no campo e exercem tarefas consideradas femininas, como cozinha e costura, sofrem exploração sexual e vivem trabalhos domésticos impostos por uniões arranjadas.
Uma em cada 130 mulheres e meninas está sujeita a formas contemporâneas de escravidão, como casamento infantil e forçado, servidão doméstica, trabalho forçado e servidão por dívida, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU).
O trabalho análogo à escravidão cresceu significativamente nos últimos anos e as mulheres e crianças são as pessoas mais vulneráveis a esse tipo de exploração. Quase 1 em cada 8 pessoas que realizavam trabalhos forçados é criança (3,3 milhões). Mais da metade delas é vítima de exploração sexual comercial, apontam os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
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Perfil das trabalhadoras escravizadas no Brasil
No Brasil, entre 2003 e 2022, 2.488 mulheres foram resgatadas de trabalho escravo, 6% do total no país, de acordo com dados do Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania (ProjAI), do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ).
A razão para esse número tão pequeno em relação aos trabalhadores do sexo masculino resgatados seria a divisão sexual do trabalho e a desvalorização do trabalho feito por mulheres, que gera uma naturalização do trabalho escravo feminino e a subnotificação nos dados oficiais.
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Tráfico de pessoas e casamento infantil
Nos casamentos forçados e no tráfico de pessoas a questão de gênero se sobressai, já que as vítimas desse tipo de exploração são principalmente mulheres e meninas. Estima-se que 22 milhões de pessoas no mundo viviam em um casamento forçado. A ONU considera esse tipo de relação uma forma contemporânea de escravidão, sobretudo quando envolve menores de idade.
O Brasil é o quinto no ranking mundial de casamentos de menores de idade e lidera nesse tipo de união na América Latina. Embora a Lei 13.811/19 proíba o casamento de menores de 16 anos, 1 em cada 9 meninas no Brasil se casa antes dos 15 anos, o que é considerado uma violação dos Direitos Humanos dessas adolescentes.
Atualmente há 2,2 milhões de menores de idade casadas ou vivendo em uniões estáveis no nosso país. A maioria abandona os estudos e passa a exercer trabalhos não remunerados no lar. Em geral, uma situação impulsionada pela pobreza, e que foi agravada pela pandemia.
No caso do tráfico de pessoas, meninas e mulheres são as maiores vítimas para fins de exploração sexual: estão envolvidas em 96% das ações penais desse crime. Nessas situações, 98% das vítimas foi enviada ao exterior (ou sofreu tentativa de envio) para prostituição forçada. O principal destino é a Europa, para países como Espanha (que recebe 56% das vítimas), Portugal, Itália e Suíça.
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Medidas para acabar com a exploração
Para acabar com a escravidão contemporânea, a OIT propõe ações como fortalecer as medidas de combate ao trabalho forçado e ao tráfico de pessoas em empresas e cadeias de suprimentos; ampliar a proteção social e fortalecer os aparatos legais, incluindo o aumento da idade legal do casamento para 18 anos, sem exceção.
Existem ainda algumas iniciativas institucionais para enfrentar o problema, como o projeto Eurofront, da ONU, que visa combater o tráfico de pessoas e o contrabando de imigrantes, atuando na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Argentina). A Operação Turquesa, realizada em parceria com a Interpol, atua em 32 países com o mesmo objetivo. A organização realiza também programas de treinamento para que profissionais de saúde e do sistema de justiça sejam capazes de identificar e prestar acolhimento às pessoas nesta situação.
A imprensa tem sido muito importante na divulgação de situações análogas à escravidão. O podcast A Mulher da Casa Abandonada e reportagens relatando casos como o de Madalena Gordiano (que passou 40 anos trabalhando sem remuneração) e de migrantes bolivianas resgatadas de oficinas de costuras em São Paulo, além de obras de ficção como a novela Salve Jorge, ajudam que a sociedade tome conhecimento do problema. Cabe agora ao poder público medidas mais efetivas para libertar pessoas e criar mecanismos que possa, de fato, dar fim ao problema.