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gabi literatura
3 de julho de 2023

Quando me descobri branca

A leitura de autoras negras me abriu espaços de reconhecimento e tensão nas questões raciais

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O título desta coluna foi inspirado no livro da escritora, jornalista e pesquisadora Bianca Santana. Em Quando me descobri negra, ela narra o processo de se entender uma mulher negra depois de anos sendo tratada como uma menina morena. “Era morena para as professoras do colégio católico, para os coleguinhas – que talvez não tomassem tanto sol – e para toda a família que nunca gostou do assunto”, escreve. O livro foi publicado em 2015 pela editora do Sesi e acaba de ganhar uma nova versão, revista e ampliada, pela editora Fósforo. Li a edição antiga. 

Começa com um relato bastante pessoal. Na primeira parte da obra, “Do que vivi”, a autora conta como foi branqueada em diferentes espaços. Narra experiências que a fizeram perceber quem era, como era seu corpo, seu cabelo, sua pele – e o que isso significava. Bianca abre o livro com a frase: “Tenho trinta anos, mas sou negra há dez”. Ali, ela aborda aspectos concretos e simbólicos do autorreconhecimento e do percurso de letramento racial. A segunda parte, “Do que ouvi”, mistura sua construção com relatos de outras mulheres, situando sua autodescoberta no campo coletivo e político. A terceira, “Do que pari”, fala do racismo que ela e outras viveram, situações que mostram a faceta violenta das descobertas que ela tinha feito.

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N’A Feira do Livro, evento literário realizado em São Paulo no início de junho de 2023, Bianca Santana levantou a questão das pessoas negras de pele clara na sociedade brasileira. “É óbvio que eu sempre soube que não era branca. Mas esse lugar de não-identidade é realidade de muitos pardos no Brasil”, explicou. E completou enfatizando que, sem o reconhecimento da identidade, não há luta política possível. 

Ao ler Quando me descobri negra, pensei pela primeira vez – pelo que tenho na memória – sobre a cor da minha pele. Minha experiência é muito diferente da dela. Eu sou branca. Estava no grupo que não tem a cor da pele incluída em nenhuma descrição. Era a garota de cabelos cacheados, ou de manchas no rosto, ou alta, ou de óculos. Ninguém dizia: é a menina branca. Nunca pensei sobre a cor da minha pele. Ninguém nunca me perguntou sobre ela, e nunca foi um assunto na minha família, entre meus amigos, na minha escola. Foram os livros que começaram a me mostrar que isso era um problema. Não racializar minha identidade, para além de relativizar privilégios, também inviabilizava uma luta política.

Contrato racial

Bianca Santana compartilhou a mesa n’A Feira com a filósofa e escritora Sueli Carneiro, grande pensadora do nosso tempo, e a conversa foi mediada pela antropóloga e também escritora Juliana Borges. O contrato racial que nasce do colonialismo e que estrutura o poder da branquitude ocupou boa parte do encontro.

Sueli lembrou como o branco se autodeclarou a representação universal, o ápice da representação humana: “Ele até leva um susto quando é chamado de branco”. Resgatando conceitos de sua obra Dispositivo de racialidade, ela refletiu sobre a organização do contrato racial no Brasil, destacando particularidades que resultaram num país racialmente apartado, com repercussões nos indicadores sociais. E chamou atenção para a dificuldade de combater a desigualdade racial. “À medida que nós tensionamos as nossas relações raciais por mais equidade, o poder branco reage com violência pra fazer a manutenção dos privilégios acumulados por meio da expropriação.”

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Não há como ter consciência desses privilégios se a pele branca não for colocada em pauta. Entender o que é ser branca é também entender o trânsito fácil, a vantagem trabalhista, o direito de escolha. “O contrato racial faz com que qualquer branco seja necessariamente beneficiário do projeto racista”, disse Sueli Carneiro. Ela lembra, entretanto, que nem toda pessoa branca é signatária desse contrato. “E é isso que faz com que negros e brancos antirracistas possam construir outro projeto de país”.

Não que seja simples. Dizer que não sou signatária não significa que eu realmente não seja (nessa coluna pr’AzMina, a ativista Viviana Santiago dá um beabá). Os relatos de Quando me descobri negra e de outros livros apontam a manutenção dos mecanismos de exclusão, como pontuou Bianca. “O pacto narcísico da branquitude leva à invenção de critérios imparciais que reproduzem o racismo o tempo todo. Além do discurso, que todo mundo consegue mimetizar, o que tem de fato sido apropriado para transformar práticas institucionais e também pessoais?”.

Estudar autoras negras certamente faz diferença para percebermos se, no fim das contas, estamos cotidianamente reproduzindo o racismo. E mergulhos literários são potenciais espelhos que nos lembram que é impossível dissociar nossa individualidade do nosso papel como sujeitos sociais.

E depois de descobrir?

A utópica separação entre quem somos individualmente e na representação coletiva foi marcante no encontro do clube do livro do Põe na Estante de maio. A leitura da vez foi Água de Barrela (editora Malê), primeiro romance da carioca Eliana Alves Cruz. O livro conta a história de uma família e do núcleo afetivo e social em torno dela, de geração em geração, a partir dos primeiros escravizados a chegarem ao Brasil vindos da África.

A escolha da autora de misturar ficção e não-ficção deixa nítido que as consequências da escravidão são vivas e latentes hoje no país. Eliana partiu da história da própria família – de objetos, relatos e memórias -, preencheu lacunas com a imaginação e com informações históricas, fruto da pesquisa na qual mergulhou para escrever.

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Nosso encontro para falar sobre a obra foi dos mais prolíficos da história do clube, com participação ativa e compartilhamento de sensações da leitura. Em comum, os incômodos de conhecer a história do Brasil de uma perspectiva afrocentrada, e o desconforto de não se saber repetindo seus aspectos excludentes e violentos. 

Nem todo mundo ali leu do mesmo lugar. Entre as pessoas brancas, foi inevitável a reflexão sobre quão tardiamente estamos racializando nossa trajetória de opressão. Ainda que às vezes flertemos com o discurso de “não tenho nada a ver com isso”, é impossível se eximir do que significa ser uma mulher branca. Ao me descobrir uma delas, passei a pensar no que fazer com isso, e as respostas nem sempre são evidentes. 

A maior riqueza da experiência literária é que ela pode ajudar nessa busca, ora a partir do acolhimento, ora do confronto. A ficção pode ser calorosa, ao ratificar o que pensamos ser nosso comportamento acertado e emancipador; e pode ser desconcertante, ao evidenciar nossos tropeços e nossa reprodução silenciosa do racismo. De uma forma ou de outra, a literatura pode promover consciência, despertar dúvida sobre nossa pretensa universalidade, ou nos apontar o dedo com a pergunta: e agora que você sabe?

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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