Há um conto de Os perigos de fumar na cama, da escritora argentina Mariana Enriques (traduzido por Elisa Menezes), que, tomando a liberdade de resumir bem, traz meninas adolescentes que se ressentem da segurança e da liberdade estética de Silvia, uma jovem adulta com quem convivem.
A coisa ganha gravidade quando uma delas se interessa por um cara, o Diego, mas ele só tem olhos para Silvia. As meninas não entendem bem, afinal elas se sentiam “muito, muito mais bonitas.” A rivalidade escala e recomendo a leitura para descobrir como termina. Spoiler: é apavorante – como tudo que escreve Mariana Enriques.
Achei muito apropriado que essa história esteja em um livro de terror; esse é mesmo um dos horrores que assombram meninas desde muito cedo: a rivalidade feminina. Há muitos monstros em que nos fazem acreditar, o bicho-papão, o abominável homem das neves, a bruxa má e a inimiga camuflada de amiga que, no fundo, só quer roubar seu namorado e ser melhor que você.
Enquanto eu lia este conto, lembrava com alguma vergonha dos tempos em que eu gostava de dizer que tinha mais amigos homens, me dava melhor com os meninos porque eles eram mais fáceis. Era mentira. Aliás, desse tempo de escola, em que eu repetia frases que ouvia por aí, foram só as mulheres que ficaram. São amigas que cultivo com muita alegria pelas inúmeras trocas que tivemos desde tão cedo.
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Virada de chave
Demorei um pouco para notar a pegadinha que o patriarcado prega sugerindo que as mulheres estão competindo. Sempre tive amigas mulheres, mas foi só com a vida adulta já batendo à porta que entendi que a sombra da rivalidade me acompanhava. Daí para virar a chave foi um processo.
Na tentativa de fugir dessa ideia, de vez em quando me pego na outra ponta, romantizando relações nada saudáveis por se tratarem de um vínculo entre mulheres.
Quando li As viúvas passam bem, livro da pernambucana Marta Barbosa Stephens, me flagrei torcendo para que as duas protagonistas descobrissem uma inesperada amizade. É a história de duas vizinhas que ficaram viúvas ao mesmo tempo em uma situação violenta e passaram a se detestar. Dedicam horas e energia a pensar como azucrinar – e às vezes prejudicar mesmo – a vida uma da outra. Eu torci para que elas entendessem que poderiam ser apoio uma da outra, apesar do tanto que já se tinham feito mal.
É diferente da história de Ana e Madalena, protagonistas de Não fossem as sílabas do sábado, romance da paulista Mariana Salomão Carrara. Elas também são duas viúvas que perderam seus companheiros em um encontro trágico entre eles. Mas não passam os dias que seguem se espezinhando (contei mais do livro nesta coluna).
Bom, na verdade, Ana não olha para Madalena com muita generosidade, culpa a vizinha pelas mortes dos companheiros e não legitima o luto da outra mulher. Mas a amizade entre elas vai nascendo pelas frestas, fruto da insistência de Madalena, que talvez se sinta mesmo culpada. E penso que elas se tornaram amigas também pela necessidade – Ana estava grávida quando o marido morreu; as ofertas de cuidado de Madalena caem como única rede de apoio que ela encontra.
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Mais encontros que desencontros
O ponto é que há amizades impossíveis e outras possíveis. A boa relação entre todas as mulheres parece inviável diante das nossas tantas diferenças. Mas quando nos distanciamos do olhar patriarcal que interdita o afeto genuíno, primeiro, estabelecemos uma premissa de respeito no olhar para a outra; segundo, ao dar abertura, nos deparamos com muito mais encontros que desencontros. Perdi as contas de quantas vezes nesse processo me surpreendi com a força que encontrei na escuta e no apoio de outras mulheres.
Nos espaços de trocas entre mulheres, não é raro que o estreitamento de vínculos venha pela dor compartilhada. A dor une as mulheres, defende a professora e escritora Vilma Piedade. Ela criou o conceito da Dororidade, que dá nome a seu livro, para dar conta de aspectos que a “sororidade”, irmandade entre mulheres, não consegue dar.
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Não dá conta porque gênero é só um dos marcadores que carregamos. Acrescentemos raça, classe, sexualidade e outros para definir quem somos e nos depararemos com dores muito diversas. “Não é que a dor das pretas seja maior. Dor é dor, e ponto. Dói muito ser mulher atacada pelo machismo, e dói muito ser mulher atacada pelo racismo”, disse a autora em uma entrevista à revista Cult.
No livro, Vilma não diz que está fora de questão a união entre mulheres diferentes, mas reforça que não há feminismo possível sem um olhar interseccional, porque não é só o machismo que viola as mulheres nas suas experiências cotidianas.
Laços profundos com amigas
No livro recém-lançado no Brasil Comunhão – a busca das mulheres pelo amor, de bell hooks (traduzido por Julia Dantas), a intelectual negra americana, que descreve a sororidade como interseccional, conta que um de seus amores mais genuínos e profundos é pela melhor amiga, uma mulher branca.
A escritora diz que a sustentação da relação de longa data pela qual ela preza muito já teve escorregadas que vieram da falta de reconhecimento da dor uma da outra. Por exemplo, quando bell hooks descobriu que a amiga nunca tinha conversado sobre racismo com as filhas. A retomada das duas veio, segundo a autora, porque a premissa de respeito estava bem construída e porque ela entende ser parte do vínculo amoroso oferecer o benefício da dúvida.
Nesse caso, ela está dizendo de uma amizade profunda; em outros, o benefício da dúvida nem sempre vai ser possível. Mas bell hooks conta que essa concessão não era opção nem nas amizades, foi a “conversão feminista” que possibilitou que ela e outras mulheres heterossexuais aprendessem a “colocar tanto valor em nossos laços com as amigas quanto nas parcerias com homens.”
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Amor e admiração
Não dá para separar a rivalidade que ronda as relações entre mulheres de outras ferramentas do patriarcado. É o que vai argumentar bell hooks ao descrever o pacote que nos afasta de quem somos, do que queremos e, por consequência, do amor. Estão nesse combo a aversão ao próprio corpo, o fingimento para performar a feminilidade esperada, a visão de que o outro nos salvará e outros aprendizados sociais.
A escritora não vê diferença entre o amor de um casal e o amor entre amigas. “Amizades longas e profundas são o lugar onde muitas mulheres conhecem o amor duradouro”, escreve bell hooks.
É nas amizades que muitas mulheres vão conhecer também a admiração, a gentileza, a não violência, o reconhecimento. Nem é preciso ser uma amiga íntima para que o vínculo se estabeleça a partir de um real desejo de estimular e apoiar a outra.
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Entre escritoras
Na troca de cartas entre as escritoras Victoria Ocampo e Virginia Woolf, registrada no livro Correspondências (traduzido por Emanuela Siqueira, Nylcéa Pedra e Rosalia Pirolli), nasce uma amizade literária que passa pelo amparo mútuo. Em uma das cartas, de 1934, a argentina manifesta sua afeição e consideração por Woolf: “Se tem alguém no mundo que pode me dar coragem e esperança, é você. Pelo simples fato de ser quem você é e de pensar como você pensa.”
As duas autoras se correspondiam em um momento em que os obstáculos para ser mulher e escritora não eram poucos. E a representação das mulheres na literatura quase sempre reproduzia só a competição entre figuras femininas.
As amizades entre elas não são comuns nos clássicos (muitos escritos por homens) – mesmo quando há uma protagonista, seu interlocutor principal costuma ser um homem, usualmente um par romântico. Hoje, os exemplos literários de amizade são mais conhecidos, uma fabulação que nos permite criar novos referenciais e conhecer possibilidades de vínculos.
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Comunhão nas ambivalências
Na Tetralogia Napolitana, sequência de quatro livros da italiana Elena Ferrante (traduzidos por Mauricio Santana Dias) que conta a história das amigas Lenu e Lila, há uma impressionante constelação de mulheres. Para além da complexa relação entre as duas protagonistas, encantadora e cheia de ambiguidades, vemos um sem número de situações em que vizinhas, colegas, amigas e parentes intervêm uma pela outra.
Nenhuma delas é o tempo todo generosa e atenta à outra, nem o tempo todo egoísta e autocentrada. Elas oscilam entre momentos em que se compadecem, em que conseguem e não conseguem enxergar a dificuldade uma da outra.
O caminho da sororidade é de errância, depois de séculos de uma verdade social oposta. Padrões não se quebram da noite para o dia e podemos ser generosas com nós mesmas na dificuldade de rompê-los. Mas não tenho dúvida de que quanto antes estivermos abertas para essa comunhão e reconhecermos nosso direito à amizade, mais cedo poderemos sustentar inclusive as nossas ambivalências. Poderemos com mais frequência oferecer uma à outra o benefício da dúvida.