
O luto é um processo desorganizador. Enquanto eu lia “Não Fossem as Sílabas do Sábado”, da paulistana Mariana Salomão Carrara, não conseguia deixar de pensar como alguém se refaz depois de uma perda trágica. A personagem, Ana, se vê diante do vazio depois que o companheiro, André, é morto, esmagado pelo vizinho que se atirou da janela. Grávida, ela precisa se situar em um contexto completamente novo, mas em uma geografia antiga.
O apartamento é o mesmo de quando André vivia, os móveis são os mesmos que eles organizavam juntos, os filmes são os mesmos que eles ora apreciavam, ora criticavam. No mais, não há reconhecimento, tudo parece inédito. Ana é arquiteta e às vezes parece querer fazer um projeto do luto, metrificando dores, encaixando lembranças e deixando apenas vazios estratégicos. Mas o luto tem dessas, não tem regra; pode reunir trenas, escalas e níveis: a aferição da desordem não sai.
No caso de Ana, não me saiu da cabeça o fato de ela experimentar a maternidade solo, já tão dura, com o acúmulo da tragédia. Não podia manifestar o insuportável diante de uma criança por vir e, logo, de um bebê que dependeria dela sem trégua. Um desamparo que não ganha terreno por falta de tempo. E há algo de muito duro: a urgência de encontrar palavras em dobro. Para nomear o que sente e para explicar à filha o que é a ausência onipresente na vida delas.
Os nomes dão contornos às dores, fica mais fácil lidar com aquilo que está no dicionário, que tem uma definição. Isso é também algo que o luto nos arranca, as palavras de costume. E não é raro que as personagens da literatura estejam enlutadas. Não necessariamente pela perda de alguém querido, mas pelo fim de um ciclo, pelo rompimento de uma relação, por uma mudança abrupta que tira as coisas do lugar.
A pandemia deu abrangência à nossa ideia de luto, nos colocou em contato constante com ele, tensionando danos individuais e coletivos. Muitas de nós passamos a estar mais sensíveis a essas perdas rotineiras tão puxadoras de tapete, desestruturantes, ainda mais quando sobrepostas.
Nossas vulnerabilidades ficaram mais dramáticas, também porque dificultam a reorganização. Não só por obstáculos sociais, financeiros, emocionais serem barreiras ao processo de recomposição, mas também porque os mais vulneráveis costumam ser também os invisíveis nesses momentos. Reconhecimento faz toda a diferença no direito de viver as oscilações que o luto traz.
O podcast Finitude – que aliás foi onde aprendi que o luto é desorganizador antes de sentir essa desordem na pele – tem um episódio sobre o luto de casais LGBTQIA+. A falta de legitimidade social a esses relacionamentos e a essas existências desestabiliza também a possibilidade de experimentar os sentimentos que vêm com a perda.
Até a próxima, vó
Há algumas semanas, morreu a minha avó materna. Dona de uma risada exuberante, ela era orgulhosa de mim. Adorava me exibir, falar do meu trabalho, contar do que eu fazia. Não que ela fosse entusiasta do jornalismo ou da literatura, na verdade o que ela achava bonito era que eu falasse no rádio ou que aparecesse na TV. Tirava foto, ligava pra dizer que tinha visto, rezava – de terço na mão, e tudo – para que eu continuasse ocupando espaços que ela pudesse acompanhar de longe.
Eu não esperava que a morte dela seria pra mim desorganizadora. Ela no interior de Minas Gerais, eu em São Paulo, já vivíamos longe uma da outra, mas a vida adulta nos distanciou mais. Em parte porque acabou a história de ter férias duas vezes ao ano e passá-las na casa da vó, em outra parte porque o processo de descobrir a inteireza das pessoas nem sempre é fácil. Mas ela nunca deixou de ser a avó que me acolheu durante quase todos os julhos e em muitos dezembros-janeiros-fevereiros, assim seguidos e juntos, e abriu a casa para a bagunça que meus primos e eu fazíamos. Divertidíssimo!
Tinha cada almoço gostoso, arroz, feijão, couve colhida direto da horta, um purê de batatas incomparável – de longe, meu favorito. Os lanches enchiam as tardes de um cheiro maravilhoso, do qual nunca me esqueço. Minha vó ficava horas em uma casinha do quintal, onde havia um fogão e um forno à lenha, além de uma bancada que ela usava para trabalhar nos vários quitutes que fazia muito bem. De lá saíam pães de queijo, biscoitos de polvilho, cajuzinhos, tortas e um biscoito indescritível, bem fritinho, que talvez a OMS não recomende, mas era uma delícia.
Podíamos muito. Ela deixava que fizéssemos experimentos culinários, autorizava que sujássemos o quintal inteiro em guerras de terra molhada. Ela gostava de espiar quando estávamos “assistindo videogame”. Como avó, Maria da Conceição era generosa, entusiasmada, carinhosa.
Não teve jeito de não me ver atravessada por tantos afetos quando ela morreu. Mas resisti. Era quase como se eu não estivesse autorizada a sentir a perda dela. Porque eu já não era tão presente. Porque achei que meu luto precisava ser menor do que o da minha mãe e dos meus tios e dos meus primos que vivem lá. Foi como se houvesse uma hierarquia do luto. E porque eu passei a reconhecer as ambiguidades da minha avó. Como se eu só pudesse me doer pela perda de alguém perfeito. Isso tudo também me desorganizou. Os pensamentos sobre o futuro ainda me angustiam.
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Ser lugar
Minha avó não era só uma pessoa, ela era também um lugar, um ponto de encontro. E sem esse espaço de reuniões familiares, temo por uma dispersão. Meu luto é também por isso, pelos encontros que não ocorrerão, pelas festas que não se farão, pelas conversas que não virão. Como se coloca isso em verbo?
Na edição de agosto do jornal literário “Rascunho”, a psicanalista e crítica literária Fabiane Secches dedicou uma coluna à avó dela, que também morreu há pouco. Há tanta delicadeza nas palavras delas, que comecei ali a me encontrar. Ler essa coluna foi como receber um abraço e as minhas próprias palavras começaram a vir.
O luto é um processo muito pessoal. Mas dividir a experiência ajuda inclusive a assentar os incômodos, entender os tempos, se reconhecer na vivência do outro, entender que, ainda que pessoal e intransferível, a dor pode se repetir, e os caminhos para viver com ela – quem sabe – possam ser compartilhados.
Em “O que você está enfrentando“, da premiada escritora estadunidense Sigrid Nunez, há uma narradora atenta e aberta à escuta, que coleciona relatos de espinhos alheios. O vizinho cuidando da mãe idosa, uma moça que lamenta o envelhecer, cada um tem uma encruzilhada a superar. O filtro que ela faz ao narrar, selecionando essas histórias a serem repartidas, dão uma pista do que ela própria está vivendo.
Esta narradora-protagonista está diante da melhor amiga em estado terminal. O câncer avança e ela escolhe morrer. Coloca diante de todo mundo esse desconforto, o de lidar com a finitude como rotina. Há muita coragem em colocar esse assunto na mesa, em um contexto social e cultural em que o assunto não é bem-vindo.
Eu não estava pronta – e sigo não estando – quando minha avó adoeceu. Isso também me tirou do lugar: acompanhar pela primeira vez de perto o adoecimento de alguém tão querido. Fui visitá-la ainda no hospital e me deparei com uma máscara de humor, que não sei bem de onde tirei, mas me peguei sendo o alívio cômico das conversas. Assusta ver a morte chegando, assusta ver decisões sobre prolongar ou não a vida sendo tomadas, assusta muito. Minha despedida foi consciente, o médico avisou que só havia o caminho de entregar conforto como possível, mas eu não consegui deixar de me paralisar diante da perspectiva da ausência.
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A força da ausência
Em “A Autobiografia da minha mãe“, Jamaica Kincaid não economiza palavras para descrever as ausências de Xuela, uma sobrevivente. A mãe dela morre quando ela nasce e o pai define que não tem condições de cuidar e decide colocá-la sob a alçada da moça que lava suas roupas. É essa palavra mesmo: alçada, porque é uma transação burocrática, sem quase nenhum afeto na relação que se constrói entre eles. Xuela tem dúvidas do que pesa mais, se ela ou o saco de calças e camisas que o pai deixa de tempos em tempos para serem limpas. Se tem algo que essa personagem tem é saudade do que não viveu. Ela não sabe o que é ter uma mãe, não sabe o que é ter um pai. Experimenta uma ausência em vida e outra em morte.
A forma como Jamaica, autora nascida em Antígua e Barbuda, escreve é fascinante. A personagem que ela cria é igualmente envolvente, nos provoca ao mesmo tempo um incômodo e um espanto tremendos ver como ela consegue se fazer mulher inteira, mesmo diante da precariedade emocional que vivencia. Ela encontra potência na ausência e se nega a se ausentar ela própria. Xuela se faz presente de formas contundentes. Como uma e como muitas. A biografia dela se confunde fluidamente com a da mãe, que era uma das últimas caraíbas, povo originário do Caribe dizimado pela colonização.
As ausências desorganizam também a identidade. O vazio demanda muitas ferramentas subjetivas para que ganhemos forma, e Xuela é resistente ao não se abandonar, apesar dos tantos abandonos. A maior beleza de “A Autobiografia da minha mãe” está no refazimento de que somos capazes mesmo diante da falta de peças primordiais.
Não é sempre serena a aproximação com histórias que nos lembram da finitude da vida, das experiências, dos ciclos. Um luto carrega todos os lutos que vieram antes e na ficção esse gatilho também pode vir. Mas a literatura feita por mulheres, com suas personagens femininas, como nessas obras citadas aqui, mostrou que é uma oportunidade de preencher vazios com palavras precisas. E, com isso, organizar o caos transformador que o luto nos impõe.