Tem falas que ficam na gente. Todas as conversas a que assisti com a argentina Camila Sosa Villada permaneceram em mim de um jeito colante. Ouvi a escritora falar duas vezes: na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), no fim do ano passado, depois em um evento em São Paulo, quando ela continuava seu giro pelo Brasil, e em entrevistas que deu. Cada vez que a escutava, queria saber mais sobre como ela via a literatura.
Ganhou minha atenção a autora se repetir, ao dizer que muitas vezes não sabe bem o que vai escrever, que deixa a criação fluir. E o resultado recorrentemente tem um pé no fantástico – em situações que extrapolam a viabilidade terrena, mas não a da ficção. Em uma resenha que escrevi sobre o livro de contos de Camila, Sou uma tola por te querer, destaquei justamente esse território em disputa que parece ser a imaginação, e como ela reivindica o direito de ocupá-lo.
Em várias falas públicas, Camila alterna entre a impossibilidade de narrar outra experiência que não a de uma travesti, e o caminho livre para inventar o que ela quiser. Seus contos, inclusive, parecem refletir o tempo todo essa tensão.
“Não posso evitar escrever sobre a violência, porque escrevo coisas que vivi,” disse a autora em Paraty. Mas, ainda que o tema a acompanhe, ela subverte essas violações com mulheres que têm asas, homens sem-cabeça, desaparições abruptas, aparições igualmente inesperadas, transmutações que transcendem o que o dicionário conhece. O realismo mágico de sua obra não desqualifica os traumas reais, mas tira o protagonismo da violência.
Em seu romance O Parque das Irmãs Magníficas, a subversão do mágico e do onírico ganha força especial. No livro, Camila parte de experiências autobiográficas para contar a história de um grupo de travestis que se prostitui em um parque de Córdoba, na Argentina. As personagens recebem conselhos da mais velha delas, a marcante Tia Encarna, e estão diante de uma fragilidade social que aumenta o senso de comunidade. Ao mesmo tempo, são pessoas olhando para si, se entendendo fora da norma e, por isso, abrindo horizontes para serem o que quiserem, inclusive fantásticas.
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Em um texto para a revista Quatro Cinco Um, a escritora e doutora em teoria literária Amara Moira resumiu a força da fantasia que a argentina imprime em suas páginas. “Travestis personificam o sonho: se elas existem, tudo é possível”, escreveu. Camila foi além: “se elas sobrevivem, tudo é possível”, disse em um evento.
Palavras como fronteira
No conto que dá nome a Sou uma tola por te querer, inspirado em uma canção de Billie Holiday, Camila Sosa Villada dá vida a María, uma narradora perspicaz que sobrevive a ambientes degradados e fica amiga da diva do jazz que motiva a história.
María é uma narradora no sentido mais completo. Não está só contando a história a nós, leitoras, mas também narrando a vida de outras mulheres e se narrando, se apropriando de vocábulos para ser dona da própria história.
Há um tremendo poder no exercício fabular da personagem, que marca a palavra como elemento crucial de formação da identidade. Não à toa, usa expressões forjadas na comunidade travesti, traduzidas para o pajubá brasileiro. Ainda na Flip, Camila falou que a palavra é a violência primeira que conhecemos. Por que não, então, também se apropriar do direito de inventá-la e usá-la como fronteira?
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A existência e a sobrevivência, afinal, também estão na palavra. Em um dos textos de vila mathusa, a escritora paulista zênite astra usa vocábulos como abrigo (a autora escreve em minúsculas). Protagonistas, as prostitutas boneca e monique não só estão autorizadas a inventar termos e expressões que as façam cúmplices, mas usam o discurso, a força da palavra, como resistência às ameaças que as rondam. Respondendo o policial que zomba do gênero delas, descrevendo e desvelando a invisibilidade metropolitana, nomeando a inadequação social.
Há um momento em que estão no cinema e uma delas se pergunta por que a fantasia dos filmes é tão limitada. Pensando nos clientes, ela sabe bem como a imaginação dá conta de tão mais, mas sua pergunta não é só sobre sexo. Boneca está pensando sobre os efeitos da própria realidade e sugere que a ficção não dá conta de tudo o que ela conhece, sabe e vive.
A personagem (e a autora) conclui que é corajoso se entregar ao insólito, desafiando as histórias que se contam repetidamente – em filmes, novelas e livros, sempre apegadas a uma moralidade convencional e a um modelo do que nos faz gente. Ao articular um discurso, apesar das amarras que se apresentam ora sim, ora também, boneca e monique se colocam no espaço ilimitado da palavra, que elas usam para questionar quem são.
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A cantora Linn da Quebrada é certeira ao falar da apropriação da palavra. Evoco uma fala dela que também me acompanha sempre, parte de uma entrevista ao podcast Mano a Mano: “Quero inventar histórias de que o Brasil é o país que mais forma travestis astronautas, travestis cantoras. A gente vai criando conforme a gente vai dizendo, esse é o perigo da palavra. A palavra como feitiço.”
A ficção é por isso maravilhosa, por ser espaço tanto para a narração das próprias dores, quanto para a fantasia completa que permite inventar um mundo inteiro.