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gabi literatura
4 de julho de 2022

Ler mulheres é uma escolha

Variar nossas perspectivas nos faz conhecer outras experiências e subjetividades para além das dominantes masculinas brancas

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leia mulheres

O que você está lendo? Não é uma pergunta retórica, nem papo de elevador – ainda que seja um bom jeito de puxar conversa. Gostaria de inaugurar este espaço que vou ter a honra de ocupar a partir deste mês com este convite: olhe para o livro que você tem agora em mãos, na bolsa ou na cabeceira e pense quem o escreveu, quem o traduziu (se for o caso), quem o editou. Se você já está mergulhada nas discussões sobre os feminismos, enaltecendo os merecidos espaços que hoje as mulheres ocupam, talvez você esteja em uma sequência de leituras de obras escritas por mulheres. Mas talvez também não tenha sido sempre assim. Comigo, ao menos, não foi.

Eu tenho uma lembrança clara de quando virei a chave, e foi recente. Em 2018, estava de mudança, e, portanto, fui obrigada a retirar e depois reorganizar todos os livros. Na hora de colocá-los nas novas prateleiras, fui reparando nos títulos e nas autorias predominantes. A quantidade de homens me surpreendeu, me assustou até. Ainda que eu já me preocupasse com a diversidade de olhares, vi que estava caminhando a passos lentos justamente na área que mais tem vez nos meus tempos e nos meus espaços: a literatura. Ali, fiz uma escolha. 

Foi uma decisão fazer com que as mulheres fossem maioria nas minhas prateleiras e, mais do que isso, nas minhas leituras, propriamente – não queria só guardá-las na biblioteca. Eu já vinha lendo uma escritora atrás da outra, mas naquele momento entendi que ainda não era suficiente e passei a investigar novos nomes, buscar autoras que ainda não conhecia, gente ainda pouco lida no Brasil ou nem publicada por aqui. 

Nas vitrines e nas gôndolas principais das livrarias, tem havido mais obras de mulheres expostas. As editoras também têm reconhecido o trabalho de autoras. Algumas, resgatam nomes celebrados e depois esquecidos. Outras apostam naquelas que nunca foram celebradas, mas deveriam ter sido. Outras ainda, independentes, se dedicam com afinco a buscar nomes novos, a descobrir quem está escapando do radar e não deveria. 

Pela revista Puñado, por exemplo, conheci uma longa lista de mulheres latino-americanas que escrevem em espanhol e nunca antes tinham sido traduzidas no Brasil. Aliás, a editora Incompleta, que faz a publicação, é comandada também por mulheres.

É óbvio, afinal

Ao mesmo tempo em que acho importante evidenciar essa mudança de chave, fico sempre com um pé atrás de ficar batendo nesta tecla de que as mulheres escrevem coisas belíssimas. Mesmo que o óbvio, por (muitas) vezes, precise ser dito. Recentemente, entrevistei a escritora colombiana Pilar Quintana, autora dos excelentes A Cachorra e Os Abismos, e perguntei até quando ela acha que vamos precisar dizer que há mulheres escritoras. Ela lembrou do cansaço que isso traz, mas disse acreditar que por enquanto ainda precisamos marcar esse espaço, espalhar nomes de mulheres escritoras e mostrar que não há diferença de qualidade entre livros escritos por homens e livros escritos por mulheres. 

Pilar está sempre em contato com livreiros de Bogotá, onde vive, e contou que ainda recebe relatos sobre clientes que recusaram um livro dela justificando que não gostam do que as mulheres escrevem. Na sequência, ela embalou a pergunta: “você consegue imaginar um livreiro oferecendo uma obra de Dostoiévski a alguém e vir uma resposta: não quero, não gosto do que os homens escrevem?”.

Fico pensando que talvez a presença mais ostensiva de livros de mulheres – no mercado e na crítica – possa fazer com que as pessoas se acostumem. Mas ainda que eu veja valor no costume, desejo que seja escolha. Que leitores e leitoras escolham ler mulheres.

Fica mais difícil quando o cânone ainda é sobretudo masculino, quando nos programas das escolas ainda estão os homens (para ser justa com meu professor Eduardo, de literatura, ele era um grande incentivador da leitura de Clarice Lispector – mas não deveríamos contar com exceções). Quem leu Úrsula no colégio? O primeiro romance brasileiro, da maranhense Maria Firmina dos Reis, não costuma ser nem mencionado aos estudantes. Há quem passe a vida toda sem saber que existiu essa mulher negra que escreveu o primeiro romance abolicionista da história do país.

Simone de Beauvoir encerra a obra Todos os Homens São Mortais com um veredito que as mulheres escritoras desafiam o tempo todo: “Eles eram homens, eles viviam. Eu não era dos seus”. Agora somos. Maria Firmina dos Reis vive. 

Leia mais: Sim, a literatura é machista e racista

Estado de alerta para autoria

O famoso TED da escritora nigeriana Chimamanda Adichie sobre o perigo de uma história única foca na construção da história social, na construção epistemológica, na produção de conhecimento. E o que há na literatura senão tudo isso e mais um pouco junto? Se não variarmos nossas perspectivas, não conheceremos outras experiências e subjetividades que não as masculinas brancas. Mas isso não cai do céu. É uma espécie de vigilância para não perder de vista quem está contando as histórias que lemos. Aos poucos, a vigilância gruda nas entranhas e passa a ser inevitável perguntar sobre o narrador, vira automático, incorporado aos ritos da leitura. Antes de tudo, saber quem estou deixando entrar.

É só vigiando quem são os autores e as autoras que estão nas estantes que conseguiremos identificar quem não está escrevendo – e aí pensar por que não estão escrevendo. Em Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf pontua que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção”. Sob o risco de excesso de ousadia ao complementar Woolf, diria que não só disso, que já é muitíssimo, precisam as mulheres escritoras, mas também de outras prerrogativas masculinas. 

Para além das condições materiais – que renderiam um texto exclusivo no país que voltou ao mapa da fome -, ainda são necessários o direito ao erro, o tempo ocioso, a negação do cuidado constante, dentre uma longa lista. As adversidades para que haja mulheres escritoras me fazem recorrentemente renovar meus votos com a minha escolha.

Não fosse a decisão de rechear minha estante com autoras, teria me privado de muitas descobertas que têm inclusive me ajudado a ler o mundo. 

  • Descobri  a capacidade de brincar com as palavras com Mariana Salomão Carrara; 
  • Questionei com ênfase o cânone literário com Virginia Woolf; 
  • Aprendi que nem tudo é o que parece com Hilda Hilst; 
  • Aprendi a gostar de clássicos com Jane Austen; Descobri os dizeres do silêncio com Elvira Vigna; 
  • Compreendi  com mais precisão as heranças e a ancestralidade com Yaa Gyasi; 
  • Entendi como nomear a inadequação com Sayaka Murata; 
  • Cheguei mais perto de entender a radicalidade da maternidade mesmo não sendo mãe com Ariana Harwicz; 
  • Conheci o tom confessional e assertivo de Maya Angelou;
  • Alcancei a potência do verbo com Carolina Maria de Jesus;
  • Descobri os afetos de Zênite Astra;

Ler é tensionar vozes

Ainda bem que fiz essa escolha, que hoje já não racionalizo o tempo todo. Foram elas, as mulheres, que me deram o léxico de que eu precisava para nomear algumas das minhas dores e alguns dos meus êxtases. Homem nenhum, por melhor escritor que fosse, teria conseguido atingir a exatidão da palavra que eu buscava. Não por incapacidade; por impossibilidade. Por isso, a decisão de ler mulheres é para mim hoje perene. 

Temos vivido no Brasil horrores diários e não é incomum que nos faltem palavras para classificá-los. A literatura, ao tensionar vozes, compor vivências e nos deslocar, nos ajuda a encontrar a palavra certa. Com ela poderemos protestar, vociferar, nos indignar. E, para que nossos gritos sejam precisos e bem direcionados, escolher quem nos abastece com palavras é tão fundamental quanto selecionar que palavras usar. Por isso, eu escolho ler mulheres.

Leia mais: Que tal ler mais mulheres?
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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