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29 de novembro de 2022

A literatura que rompe o silêncio sobre o aborto

Escritoras ecoam tema que muitas brasileiras precisam manter em segredo

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Ainda não superei a emoção da entrega do Nobel de Literatura de 2022 para a francesa Annie Ernaux. Já faz um mês, mas a vinda da autora à Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, no sábado passado (26/11/22), transformou as últimas semanas em uma grande rave nos espaços literários para discutir e celebrar a obra da autora. Sorte a nossa!

Na minha estante, Annie tem espaço privilegiado. Não só porque passei a ser uma grande leitora de sua obra desde que ela voltou a ser publicada no Brasil (agora no catálogo da editora Fósforo), mas também porque seus livros me reafirmam diariamente a importância de conhecer a experiência das mulheres. É que identificar os silêncios daquelas que me rodeiam tem me mostrado que as nossas vivências nem sempre têm espaço — ainda que hoje tenham um pouco mais.

As experiências a que me refiro seriam qualquer uma que comporte a subjetividade, que compartilhe o íntimo e que faça a ponte entre o individual e o social. Esses relatos públicos de mulheres são um risco em uma sociedade patriarcal. Imagine se elas começarem a compartilhar o que sentem, descobrirem nessas conversas que as etiquetas que lhes foram entregues não servem, que os lugares dedicados a elas são apertados. Perigosíssimo. Vale para os incômodos diários; vale para as opressões perenes e estruturais.

Annie Ernaux é subversiva ao escrever sobre a própria vida. Como somos todas nós quando dizemos com todas as letras que nossas memórias importam, que nosso passado, presente e futuro importam. Dialogam com o espírito do tempo.

Os romances memorialísticos da escritora não tinham boa aceitação da crítica francesa há até pouco tempo. Não se via valor no acerto de contas que ela faz com suas histórias, e tampouco se destacava o que hoje é visto como o grande mérito de sua obra:  falar de si ao mesmo tempo em que fala do todo, partindo de suas memórias para desenhar a França dos anos narrados. Mas que valor teria a perspectiva de mundo de uma mulher, não é? Ainda mais uma mulher que escreve sobre o que se deve calar. Na Flip, Annie endossou essa perspectiva, disse que o incômodo não vem só porque ela é uma mulher. “É o fato de eu ser uma mulher que escreve o que eu escrevo. Da minha parte, é muito bom ter sido a primeira francesa a ganhar Nobel, e com uma escrita que pode ser uma fonte de liberdade.”

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O Acontecimento

Em 1963, o aborto ainda era proibido na França. Annie Ernaux tinha 23 anos, estava na universidade, e engravidou sem querer. Não teve dúvidas de que um filho, àquela altura, não era opção. Quatro décadas depois, transformou a história em um livro. O Acontecimento é, pra mim, seu relato mais potente. Já escrevi sobre a importância de narrar com tanta franqueza lembranças íntimas compartilhadas por muitas mulheres, que jamais se sentirão confortáveis para falar sobre elas.

Ao contar sobre o próprio aborto e sobre o que sentiu ao realizar um procedimento considerado ilegal, Annie é habilidosa em deslocar o olhar para o que há de grave: o fato de essas dores — e os riscos — serem consequência de uma lei opressora e sufocante, de um Estado que controla os corpos das mulheres. O que me faz gostar especialmente desse livro é como a escritora consegue tirar o aborto do campo moral, como deve ser.

Ela não sente culpa por interromper a gravidez, tem convicção de que a decisão é a mais acertada e a mais fiel ao que deseja. O que diz sentir é um incômodo profundo pelo silêncio que rodeia a clandestinidade. Isso reduz a escolha à solidão e estreita o acesso à informação para um aborto seguro. 

Annie busca o apoio de amigos, mas até os que parecem mais progressistas viram as costas. Ela narra também o primeiro apoio que recebeu, de outra mulher. A  escritora diz querer exaltar com nome e sobrenome, mas se vê impedida de fazê-lo em páginas públicas e a identifica como L.B. Foi quem a ajudou, emprestando, inclusive, o dinheiro que ela não tinha e de que precisava para pagar o procedimento. “Um endereço e dinheiro eram as únicas coisas de que eu precisava naquele momento.”

A escritora está narrando mais uma vez sobre sua subjetividade, mas está também dizendo o óbvio: que criminalizar o aborto não evita que eles aconteçam, só impede que eles sejam seguros. Para realizar o aborto, Annie recorre a uma “fazedora de anjos”, como ela chama, mulheres que conheciam alguns métodos, naquele período, disponíveis para interromper a gravidez. Era um procedimento mecânico e invasivo, com a introdução de objetos diversos, como hoje ainda ocorre com muitas brasileiras, diante da criminalização no país. Na época, não era difundida a possibilidade do aborto com medicamentos, sem intervenções.

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Falta informação

Quem sabe, no Brasil, como se faz um aborto seguro? Como a lei brasileira só permite a interrupção da gravidez em três casos (estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto) — e, ainda assim, há dificuldade em conseguir um procedimento adequado — não há informações em plataformas das autoridades sanitárias nacionais. As ONGs e os grupos feministas que compartilham orientações responsáveis não são amplamente conhecidos. E nos círculos íntimos o assunto é velado.

Como se fala aberta e responsavelmente sobre algo que a lei diz que você não pode fazer? Espaço profícuo para a desinformação e para esvaziar ou distorcer o debate.

Em Estela sem Deus, do escritor Jeferson Tenório, a protagonista é uma menina que acompanhamos durante parte da adolescência. Uma filósofa inata, que tem só 13 anos, mas olha para o mundo com profundidade. Estela é negra, mora na periferia com a mãe empregada doméstica, e o irmão mais novo, filho de um pai diferente. A família peregrina em busca de um contorno digno para a vida e a garota pula de encruzilhada em encruzilhada buscando um conforto existencial que, vira e mexe, esbarra no abandono das figuras masculinas. 

Li o livro para um episódio em 2020 do meu podcast Põe na Estante. Agora a obra acaba de ser relançada pela Companhia das Letras. Voltei a ela ao ver mulheres problematizando um  aborto narrado na história. Claro que a literatura não tem compromisso com os fatos, mas algumas leitoras apontaram incômodo quando a personagem Estela, depois de decidir abortar, procura uma amiga, que a orienta a ingerir dois comprimidos e inserir outros dois no canal vaginal. 

A menina tem dores duradouras e um sangramento, fica com medo e recorre de novo à amiga experiente, que sugere que ela vá a um hospital avaliar se já abortou e precisa fazer uma curetagem. Para essas leitoras, a história desinforma sobre a garantia de segurança que hoje o misoprostol pode oferecer às que optam pelo aborto — pode salvar vidas e, inclusive, o método medicamentoso é o mais recomendado pela Organização Mundial de Saúde há pelo menos 10 anos. Tem mais eficácia e menos efeitos colaterais quando há uso orientado e adequado. 

Leia mais: Como funciona o aborto legal no Brasil?

Recomendo a leitura da reportagem completa feita pela equipe d’AzMina exatamente sobre isso. O texto explica a importância do medicamento para a saúde reprodutiva das mulheres e fala sobre os riscos de um abortamento incompleto, como parece ter acontecido com a personagem Estela.

Também conversei com profissionais de saúde, ginecologistas. Fui atrás de informação, não para invalidar nenhum tipo de desconforto com a literatura, mas para entender se o debate motivado pelo livro estava baseado em evidências científicas. E meu maior incômodo foi o fato de essas conversas não estarem acontecendo em espaços públicos. É, sobretudo, contraproducente.

Abortos acontecem

No livro O Oito (editora Alameda), a paraense Paloma Franca Amorim começa a história com um aborto. Na verdade, a narradora diz que o companheiro só descobriu que houve uma gestação  quando ela não estava mais grávida. Há uma briga entre eles; Paulo, o companheiro, ofende, insulta e, com palavras carregadas de uma moral autoritária, começa a selar o fim da relação.

A história não é sobre o aborto, é sobre uma geração em mudança que se reúne no bar que nomeia o livro. Jovens que estão começando a olhar para as injustiças de outra forma, a confrontar as violências estruturais, mas que, mesmo assim, se veem amarrados por silêncios, ainda que reconheçam certo prazer nos segredos. A passagem inicial, sobre a interrupção da gravidez, é só isso, uma passagem.

O que me faz gostar deste recurso é que ele dá um tom muito próximo à realidade: os abortos acontecem, são passagens da vida de muitas de nós. No Brasil, 20% das mulheres farão um aborto até os 40 anos, diz a Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2016. Isso significa uma em cada cinco mulheres. Muita gente. É pouquíssimo provável que no seu círculo de amigas ou entre as mulheres da sua família, nenhuma tenha feito ou venha a fazer um aborto. 

Leia mais: Quando o aborto encurta o luto e alivia o sofrimento

Mas essas histórias acabam se revelando tardiamente. Como Annie Ernaux, que resolveu escrever sobre isso após 40 anos do fato, muitas mulheres só se sentem seguras para contar que abortaram muito tempo depois. Não dá para generalizar os motivos, mas entre os relatos que me foram confiados, há um receio de verbalizar algo que pode encarcerá-las, há uma culpa por ter feito uma escolha que as sociedades conservadoras reprovam moralmente, e há uma tristeza pela solidão. 

Uma mulher que me contou ter abortado com Misoprostol sentiu muito medo por não ter colhido informações suficientes antes de fazer o procedimento e não saber se a dor que ela sentia era esperada. Uma pessoa que me contou ter abortado em uma clínica ginecológica sentiu-se culpada por poder pagar, enquanto sabia que muitas mulheres não podiam (ela precisou de R$ 8.000, em valores atualizados, gastos em dinheiro vivo e de uma vez). Uma mulher que também abortou em uma clínica me contou estar certa de que, se tivesse tido a oportunidade de conversar com alguém, não teria abortado, mas precisou decidir sozinha e calada.

Lidar com essa escolha não deveria ser um processo complexo. Nos relatos de mulheres que abortam no Brasil, muitas das dores e das elaborações com as quais elas precisam lidar se encontram na clandestinidade e não no procedimento em si. Eliminar a ilegalidade é acabar com muitas dessas camadas e levar a discussão ao que realmente importa: a saúde pública, a autonomia, os direitos, a dignidade. Mas enquanto a conversa sobre o aborto estiver restrita ao campo moral, precisaremos de estratégias para desfazer os silêncios. 

Escreveremos todas?

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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