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23 de setembro de 2024

Mad Max, queimadas e as eleições 

Estamos deprimidas, deveríamos estar Furiosas 

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Colagem digital mostra o teclado de uma urna eleitoral, com uma mulher escalando o teclado e um dos pés sobre a tecla "corrige". Ao fundo um cenário avermelhado onde homens chegam armados e sobre carros para impor seu domínio sobre o caos, remetendo ao mundo distópico de Mad Max

Diante dos recentes impactos da crise climática, que é uma consequência direta da ação humana, é quase inevitável pensar nas ficções distópicas passadas em mundos desérticos. O mundo de Mad Max é dominado por uma hipermasculinidade tóxica e vulgar – algo que lembra as recentes trocas de impropérios e cadeiras voadoras em debates televisivos. As mulheres são mantidas reféns para gerar filhos que morrerão em uma guerra permanente. Ou seja, muitos sinais de alerta. 

No filme Furiosa – Uma saga Mad Max, a personagem-título é sequestrada ainda criança e levada ao líder de uma gangue de motoqueiros. Eles vivem no deserto que sobrou da Terra depois que os recursos naturais foram praticamente exauridos. E Furiosa é valiosa porque vem de um “lugar de abundância”, uma espécie de oásis onde há água e vegetação. 

Com frequência vemos as distopias serem mencionadas como analogias (em alguns casos, hipérboles) para ilustrar situações que parecem obras de ficção ou sobre os quais não temos muito repertório para descrever. Há alguns anos, os temores em relação à tecnologia foram sintetizados na frase “isso é muito Black Mirror”. A série Handmaid’s Tale costuma ser mencionada para falar da ofensiva contra os direitos reprodutivos das pessoas que gestam.    

O que eu me pergunto é por que as distopias nos servem mais como figura de linguagem que como inspiração? E se o temor do que pode ser feito a partir dos avanços tecnológicos levasse à pressão pela regulamentação da Internet e das inteligências artificiais? E se a opressão vivida pelas mulheres em Gilead nos motivasse a criar nossas próprias redes de organização e resistência? 

A ideia inicial do raptor de Furiosa era que ela revelasse a localização do “lugar de abundância”, mas ela nega. Seu destino seria ser moeda de troca entre os homens poderosos, ao que Furiosa escapa, entra numa jornada de vingança e termina num projeto de libertação coletiva (história que é contada no filme anterior da franquia, Mad Max – Estrada da Fúria).

O futuro não cabe em urnas

Em 2019, uma série de queimadas ocorreram no Brasil. Houve suspeitas de que os incêndios teriam sido provocados por ruralistas em apoio ao então presidente Jair Bolsonaro. Após 5 anos, as investigações sobre o  “Dia do Fogo” foram arquivadas e ninguém foi responsabilizado. Quando vejo artigos e posts dizendo para as pessoas lembrarem da dificuldade de respirar na hora do voto, eu penso que eu já fiz isso e não mudou nada. 

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Não vai mudar. Primeiro porque as alianças formadas em nome da governabilidade não permitem bater de frente com o agronegócio; segundo porque a composição do Congresso Nacional também não vai mudar isso. Terceiro porque o governo brasileiro não tem interesse em romper com a economia à base de combustíveis fósseis. Quarto porque as propostas de parlamentares que são “muito radicais” não têm chance de aprovação. 

Não há muitas possibilidades para tentar barrar o avanço da boiada, então apenas propostas de mais vigilância e punição ganham espaço. Ou criam  um grupo de trabalho que vai passar seis meses elaborando soluções, que, na prática, irão propor outros grupos de trabalho. Alguém pode até argumentar que se houver renovação das cadeiras no Congresso, vai acontecer. Mas não vai. Não na urgência que o caos climático nos impõe.

Distopias como Mad Max também costumam ser evocadas para reafirmar a necessidade do Estado regulador das relações sociais. Sem ele imperaria a guerra de todos contra todos. Contudo, do mesmo modo que crise climática não acontece naturalmente, sendo o resultado direto da ação humana, esse mundo distópico para o qual caminhamos não surgiu por falta de Estado. Não é uma questão de “desgoverno”. Ao contrário, é o resultado direto da tomada de decisões políticas dos governos dos países ao longo do último século.

Nas distopias, a resistência tende a se organizar coletivamente para sobreviver, não para tomar o lugar do opressor. É preciso impedir que nossas energias sejam drenadas pelo evento eleição e pensar nas estratégias para uma vida que não cabe nas urnas. 

Autocuidado é agir coletivamente

Desde a pandemia, depressão, ansiedade, burnout e outras condições relacionadas ao adoecimento mental têm crescido entre as brasileiras. Estima-se que 45% tenha sido diagnosticada com algum transtorno mental. Problemas financeiros, excesso de horas de trabalho, sobrecarga com cuidado de pessoas e do lar são os principais motivos para este quadro. Tudo isso tende a ser agravado pela ansiedade climática, condição caracterizada por sentimentos de impotência, angústia, mal-estar e medo em relação às mudanças do clima. 

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Como já dissemos em uma coluna anterior, mulheres e meninas são as pessoas mais afetadas pelos efeitos da crise climática, tanto em termos de agravamento da pobreza, quanto fisicamente (no caso das mulheres e demais pessoas que menstruam e/ou estão passando pela menopausa). No começo do ano as enchentes no Sul do país deixaram milhares sem nada. Agora as queimadas estão literalmente nos deixando sem ar. 

Estamos no Setembro Amarelo – mês de prevenção ao suicídio -, mas como manter a saúde mental sem saúde física, se a vida coletiva parece estar o tempo todo por um fio? Estamos deprimidas, cansadas e sem esperança enquanto deveríamos estar Furiosas. Retomando a ideia das distopias como motores da imaginação, gosto de pensar que é possível encontrar uma maneira de canalizar nossas emoções para uma reação coletiva que privilegie a proteção de mulheres e crianças. Que imagine a construção de um mundo novo sobre os escombros desse que caminha para a própria destruição.

As distopias nos ensinam que não se resiste ao apocalipse com sufrágio, memes ou ironia amarga. Tampouco realizando passeatas aos domingos com itinerário previamente autorizado pelo poder público. É preciso transformar o luto pelo fim numa luta obstinada pela vida. Isso passa por abandonar crenças em soluções de cima pra baixo e usar métodos mais contundentes que o voto ou as passeatas. 

As distopias nos ensinam que para sobreviver ao apocalipse é preciso adquirir conhecimentos e habilidades para ter autonomia. Não estou me referindo a dar tiros e empinar moto (mas se quiser pode). Falo de primeiros socorros, mecânica, como obter água e utilizar as plantas medicinais, cultivar alimentos, desenvolvimento de formas alternativas de comunicação. 

Um caminho é olhar para povos e mulheres indígenas que, mesmo em sofrimento, nos mostram o Bem Viver e que o Futuro é Ancestral. Para os coletivos que no exato momento em que nossas florestas queimam, formam brigadas autônomas para apagar incêndios e ocupam praças, terrenos baldios e outros espaços no campo e na cidade para criar hortas comunitárias.

Não é fácil desapegar do modo de vida que nos conduziu a tudo isso. Mas é importante lembrar que, apesar de não termos participado de muitas das decisões que fizeram o mundo ser do jeito que é, fomos nós, mulheres, que o parimos. Fomos nós, por meio do trabalho do cuidado, que tornamos possível que ele florescesse. Fomos, nós classe trabalhadora, que o construímos. Por isso, só nós seremos capazes de erguer outro. 

Leia mais: Crise climática e mulheres: é o nosso consumo que destrói o meio ambiente?
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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