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12 de agosto de 2024

Kamala Harris: limites e possibilidades de uma candidata negra à Casa Branca 

Como a entrada da atual vice-presidente na corrida eleitoral pelo Partido Democrata pode mudar os rumos da política em toda a América, inclusive no Brasil

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Ilustração mostra Kamala Harris com um mapa dos EUA ao fundo, em uma composição de imagens com a Casa Branca, uma urna e a bandeira dos EUA.

Desde que o atual presidente dos Estados Unidos Joe Biden anunciou que não iria mais concorrer à reeleição, as atenções de todo o mundo se voltaram para sua vice, Kamala Harris. Ex-procuradora de Justiça, eleita para vários cargos políticos, entre eles o Senado, ela era o nome mais cotado para concorrer pelo Partido Democrata contra Donald Trump. E  foi confirmada a menos de 100 dias do pleito. 

Antes mesmo de ser confirmada como candidata oficial, Kamala bateu recorde nas arrecadações da campanha. Do montante recebido, 66% são doações pequenas, o que indica que além dos grandes financiadores (que haviam pressionado para a renúncia de Biden), existe adesão dos cidadãos comuns. Isso é reforçado pelas pesquisas de intenção de voto, que colocam a democrata um ponto à frente do rival, com 43%, e pelo número de voluntários inscritos para trabalhar em sua campanha – mais de 170 mil pessoas só na primeira semana.

É difícil tentar antecipar resultados, porque a eleição dos Estados Unidos não é decidida pelo voto popular, mas pelo Colégio Eleitoral. Contudo, uma eventual vitória de Kamala seria importantíssima para o Brasil. A derrota de Trump enfraqueceria o avanço da extrema direita misógina, racista e fundamentalista no continente. Além disso, a eleição de uma mulher racializada e com posições firmes sobre direitos reprodutivos e a crise climática demonstraria que há outro modo de fazer frente à escalada conservadora.    

Sem medo de falar de aborto

Durante a década de 70, enquanto feministas estadunidenses se mobilizaram pela ratificação da Emenda dos Direitos Iguais, a reação conservadora articulou uma coalizão que unia a direita cristã, militarismo e anticomunistas ferrenhos. Esse movimento mais tarde ficaria conhecido como neoconservadorismo e foi ativamente exportado para a América Latina nas décadas seguintes.

Devido ao lobby antifeminista, a emenda nunca foi validada. Mas uma importante conquista dos movimentos de mulheres ocorreu nesse período. Em 1973, a Suprema Corte aprovou a decisão Roe x Wade, estabelecendo o direito ao aborto naquele país. Essa decisão foi derrubada em 2022. Embora ocorrida sob o governo Biden, o voto de juízes conservadores, nomeados por presidentes republicanos, foi crucial para que isso acontecesse. 

Desde 2022, as leis relativas à interrupção da gestação ficaram a cargo dos Estados. Em alguns, a realização do procedimento foi totalmente proibida. O tema voltou ao debate público durante a campanha eleitoral. Diferentemente do que ocorre no Brasil, a religião não ditou o tom dos candidatos – e olha que estamos falando de um país (os EUA) de ampla maioria cristã.

Defensora ferrenha do direito ao aborto, Kamala diz que se for eleita vai reverter a decisão da Suprema Corte, enquanto Trump se esquiva dizendo que se trata de uma decisão dos Estados, ainda que já tenha dito que não irá proibir o procedimento em nível federal e tampouco irá proibir a circulação de medicamentos para sua realização

O debate deve ser ampliado nas próximas semanas, mas já tem um saldo positivo de mostrar uma outra abordagem do tema. A candidata progressista não tem medo de adotar um posicionamento firme. Algo muito diferente do que vimos por aqui nas últimas eleições majoritárias. Não vemos nenhum candidato declarando ser contrário à realização do procedimento ou divulgando carta de compromisso ao “povo de Deus”.  

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Temos, por fim, o aprendizado de como as nomeações para a Suprema Corte devem ser pensadas como legados que afetarão o futuro da população – não como simples instrumentos de blindagem de quem está no poder. Afinal, lá e cá, a criminalização do aborto atinge com mais intensidade as pessoas pretas e pobres com capacidade de gestar. 

Representatividade importa, mas não é só isso

O neoconservadorismo emergiu  no mesmo período em que Shirley Chisholm, primeira mulher negra eleita para o congresso dos Estados Unidos, se lançou pré-candidata à presidência pelo Partido Democrata, em 1972. Embora tenha obtido bastante repercussão midiática, a falta de apoio dos homens da comunidade negra, do feminismo branco e de membros de seu partido acabou por inviabilizar que ela continuasse na disputa. 

No fim, o candidato escolhido foi mais um homem branco de meia-idade, o então senador George McGovern. Mais tarde ele seria derrotado por Richard Nixon, um dos maiores expoentes da ideologia neoconservadora. 

Além de Chisholm, outras mulheres negras se candidataram à presidência dos Estados Unidos, concorrendo por partidos pequenos e sem chance real de elegibilidade. Isso faz de Kamala a primeira candidata negra viável, pois além de representar um dos grandes partidos, ela tem acesso a um volume de financiamento digno de uma legenda desse porte. Ela também tem a vantagem de ser conhecida pelo público, por estar na vice-presidência e contar com apoiadores de peso, como o casal Michelle e Barack Obama, Beyoncé, entre outras celebridades.

Seria ingênuo reduzir a candidatura de Kamala a uma questão de representatividade. Por um lado, ela abraça a pauta dos direitos reprodutivos, e no passado se destacou como advogada a favor da causa ambiental e contra crimes sexuais. Por outro lado, sua atuação como promotora e na vice-presidência não demonstra exatamente um comprometimento com a questão racial

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Sua abordagem linha-dura aumentou o número de condenações, o que atingiu com maior intensidade justamente as comunidades racializadas. A democrata também é cobrada pela política dos Estados Unidos de apoio a Israel na guerra que o país trava, há meses, contra a Palestina, na qual as maiores vítimas são mulheres e crianças.  

Contudo, é notório que sua candidatura movimenta o pleito, porque atrai pessoas desiludidas com a política representativa, especialmente jovens, mulheres e pessoas não-brancas. Nos Estados Unidos o voto não é obrigatório, é preciso se registrar para poder participar da eleição. Desde o anúncio de sua candidatura, tem crescido a mobilização para ampliar o registro de eleitores, sobretudo na comunidade negra.  

Batendo de frente com o neoconservadorismo

O neoconservadorismo mobiliza a partir do discurso antifeminista e antigênero. Desse modo, atrai para suas fileiras, principalmente (mas não só), homens cisgêneros heterossexuais ressentidos com as consequências do neoliberalismo (desemprego, empobrecimento) e com os pequenos avanços obtidos por minorias sociais (mulheres, pessoas LGBTQIA+, negros, indígenas, imigrantes), conforme explica a cientista política Wendy Brown

Os partidários dessa ideologia, influenciados por líderes conservadores como Trump e Bolsonaro, sonham em retornar a um passado glorioso que nunca existiu. Ou pelo menos poder praticar discursos e atos de ódio sem serem recriminados publicamente ou penalizados legalmente. 

Trump, que já possui um amplo histórico de declarações racistas e misóginas, passou a atacar Kamala publicamente tão logo Biden renunciou. O republicano a chamou de inútil, lunática e a acusou de se declarar negra para obter vantagens políticas. Nos Estados Unidos Kamala é considerada bi-racial, por ser filha de pai negro jamaicano e mãe indiana. Em 2021, o candidato a vice de Trump, J.D.Vance, já havia criticado a democrata por não ter filhos.

Mesmo que lamentáveis, esses recursos apelativos são esperados. Fazem parte de uma tática das novas direitas para desestabilizar os adversários evitando debater questões que importam, como a crise climática (tema sobre o qual Trump é um negacionista)

Lições para o Brasil

Kamala não se deixou intimidar diante dos ataques e declarou: “Se tem algo a dizer, diga na minha cara”, em uma provocação pública ao republicano, que tem vacilado em confirmar presença no debate televisivo. Enquanto o discurso de Trump acena para o conservadorismo e o pânico moral, Kamala rebate com propostas de ampliação da democracia, defesa da educação e combate à pobreza.  

É cedo para arriscar um palpite sobre o resultado da disputa, principalmente considerando as peculiaridades do sistema eleitoral norte-americano. Entretanto, a candidatura de Kamala já deixou claro que para barrar o avanço da extrema direita é preciso o correr o riscos: ao invés de seguir disputando o eleitorado da direita, investir na direção oposta, mais à esquerda.

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Não se trata apenas de investir em candidaturas femininas e/ou de pessoas racializadas. Se olharmos para os dados de mulheres e pessoas negras no Congresso Nacional brasileiro, veremos que uma parte significativa delas está alinhada ao discurso conservador – o tipo de representatividade que não ajuda e ainda atrapalha. Trata-se de ter coragem de se contrapor com firmeza ao discurso reacionário, de apostar em candidaturas que não sejam apenas a de homens brancos idosos colocados como salvadores da pátria. Torcendo para que na formação de próxima frente super ampla algo semelhante aconteça por aqui.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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