
Estamos vivendo um período de conservadorismo extremo que tem a transfobia como principal pilar. O discurso é um só ao redor do mundo e é entoado por pessoas como J.K. Rowling, Donald Trump, Nikolas Ferreira, e enaltecidos pelos donos das plataformas digitais. A transfobia elege, enriquece e tem tomado proporções inimagináveis.
J.K. Rowling, por exemplo, se tornou mais do que a criadora do universo Harry Potter nos últimos anos. Hoje ela é uma das principais porta-vozes do ódio às pessoas trans. E tudo começou com a recusa ao termo “pessoas que menstruam”, no ano de 2020, em um ataque direto às corporações trans, principalmente transmasculinas.
Depois, a autora da saga mais vendida no mundo, começou a financiar projetos antitrans e encabeçar linchamentos virtuais contra pessoas que ela imagina serem trans, mas não são. Foi o caso da boxeadora Imane Khelif, que foi alvo de ataques de ódio por “parecer trans”.
Em tempos de redes sociais, em que só situações viralizáveis importam, o alcance de declarações e debates toma outras proporções. É uma disputa diária de narrativas e, no fim, acabamos favorecendo quem não deveria ganhar espaço. Mas nessa guerra de narrativas não temos mais tempo para esperar: as vidas de pessoas trans precisam ser prioridade.
Visibilidade para quem merece
A cisgeneridade transfóbica sabe que a visibilidade trans coloca em cheque muitas coisas que esse grupo via como imutáveis. São séculos de domínio e apagamento das nossas vivências. É por isso que precisamos que pessoas cis, que não compactuam com esse ódio, visibilizem, cada vez mais, as nossas vivências e não os nossos algozes.
Quando vemos a potência da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) na política, entendemos o que é ter uma pessoa preparada para nos representar. E ao ver o talento de Liniker na música, entendemos que outros artistas precisam do reconhecimento das suas excelências.
Quando falamos sobre gênero para as crianças, impedimos que elas sejam colocadas em caixas dolorosas demais em seu crescimento, e evitamos uma série de violências e violações que elas podem passar. A existência trans destrói toda lógica do cissexismo, e, por isso, muitas pessoas cisgênero têm pânico só de pensar em abrir mão dos privilégios.
Erika Hilton, aliás, é o exemplo mais nítido que podemos ter de uma potência trans que jamais deixaria de pensar coletivamente. A luta coletiva é intrínseca à nossa existência enquanto corpos mais marginalizados da sociedade.
Em um vídeo de cinco minutos, a parlamentar conseguiu, em 24h, um alcance extremamente potente para desmentir a onda de desinformação da extrema-direita sobre a tal taxação do pix. Mais de 90 milhões de views – e sem ajuda extra da plataforma. Erika prova que, quando chegamos em lugares importantes, vamos nos dedicar com toda nossa força para permanecer ali. Ela conseguiu, em seu primeiro mandato no Congresso Nacional, tornar a política pop, acessível e interessante não só para os seus eleitores, mas para toda sociedade.
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Ódio não é liberdade de expressão
O ódio e a desinformação nunca devem ser vistos como liberdade de expressão. A única forma de realmente termos liberdade é permitindo que vozes diversas sejam igualmente ouvidas. E sem vozes trans jamais haverá democracia.
Se hoje vivemos em um mundo digital, precisamos criar ambientes seguros para que essa diversidade realmente exista. Temos visto posturas assustadoras das big techs, principalmente mídias sociais, como a Meta, se alinhando aos discursos de Trump e acabando com as políticas de diversidade.
Eliminar o ódio contra as vivências trans, assegurando direitos civis, sociais e políticos, protegendo essa população desde sua infância e garantindo que a expectativa de vida seja superior aos 35 anos. Esse é o único caminho possível.
Neste 29 de janeiro, data tão importante e cara para nós, precisamos que essa visibilidade tenha participação popular e efetiva de pessoas trans, sobretudo no mercado de trabalho.
Quando lutamos contra a transfobia mexemos na estrutura dorsal do cissexismo que molda todas as pessoas, sejam trans ou cis. Mostramos que existem outras vivências e formas de viver em sociedade. Evidenciamos os problemas daquele caminho historicamente apresentado, marcado por machismo, misoginia, racismo e sem consciência de classe.
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O combate à transfobia precisa ser diário
Nesses 21 anos de luta do movimento trans por visibilidade, muitas conquistas foram feitas. Mas ainda precisamos de mais. Ninguém deve ser impedido de ter afeto familiar ou romântico, de frequentar as salas de aula, de usar o banheiro, de praticar esportes, de ter oportunidades de trabalho por ser quem se é. Precisamos parar de tolerar o intolerável.
Espero que possamos contar, cada vez mais, com o apoio de aliados dispostos a estarem com a gente nas trincheiras mais difíceis que teremos pela frente diante dos rumos que estamos assistindo o mundo tomar. Seja ouvindo nossa música, assistindo à nossa arte, nos elegendo para política, nos contratando para suas empresas e, principalmente, se levantando contra o ódio e todo o poder sobretudo financeiro que tem por trás dele.
Nosso consumo, nesse mundo capitalista, define nossas lutas. Consumir o trabalho de uma pessoa declaradamente transfóbica é escolher um lado. Isso também vale para quem opta por não ouvir, ler, assistir ou valorizar um artista trans. Precisamos, de uma vez por todas, dar visibilidade para as pessoas certas, sem espaço para as transfóbicas. Afinal, creio ser impossível separar o autor da obra.
É hora de permitir que a gente fale mais alto do que esse ódio, valorizando nossas potências. Assim construiremos um mundo com menos ‘J.K. Rowlings’ e mais ‘Erikas Hiltons’. O futuro é travesti, o futuro é trans. E esse futuro precisa ser agora.