O livro A segunda mãe, de Karin Hueck (editora Todavia), foi uma das minhas melhores leituras de 2023. A história chacoalha quem lê ao propor caminhos nada óbvios. É saborosa a proposta da autora, de descobertas graduais ao longo da obra, com surpresas que pegam a gente na curva. Por isso, aqui vou me ater apenas ao essencial, para que você também se surpreenda no seu tempo.
Trata-se da história de duas mulheres, Madalena e Andrea, que são casadas e têm uma filha. Elas vivem um mundo diferente do nosso, rodeadas por outras mulheres. Andrea trabalha fora, desfruta do status de um emprego prestigioso que a faz transitar em meios influentes; Andrea também é a mãe que gesta, está esperando uma segunda criança. Madalena se inquieta com a vida doméstica, se frustra com a dedicação à filha e se ressente do sucesso da companheira.
O enredo é uma distopia, um futuro que não parece muito distante, mas com outras regras. Conforme a vida de Madalena e Andrea vai enfrentando sobressaltos, outras mulheres vão entrando na trama. Uma babá, quando Madalena decide trabalhar fora; a companheira de trabalho de Madalena no salão de beleza em que ela se instala; a dona do salão; e colegas de Andrea que aparecem de raspão.
Nos círculos exclusivamente femininos, há menos violência, há mais liberdade de ir e vir, mais possibilidades de transitar por espaços de poder. Mas, ainda que com outra cara, está tudo ali. As opressões têm outras formas, mas não somem. As mulheres parecem todas iguais, mas não há como eliminar as desigualdades que vêm de tantos lados.
Há muitas chaves para ler este romance de estreia da escritora e jornalista Karin Hueck. Uma das que parecem latentes é a impossibilidade de pensar a violência isolando o gênero de outros marcadores, como raça e classe. A interseccionalidade, interação ou sobreposição desses indicadores, é fundamental para buscar caminhos de equidade.
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Interseccionalidade
O termo interseccionalidade foi cunhado pela americana Kimberlé Crenshaw em 1989. O conceito “interseccionalidade” apareceu pela primeira vez em um documento jurídico, no contexto das leis antidiscriminação, e foi retomado mais tarde por diferentes feministas negras que contribuíram para que entendêssemos as dinâmicas de exclusão.
No clássico Mulheres, raça e classe (obra traduzida por Heci Regina Candiani, Boitempo), a filósofa Angela Davis conta como questões raciais e econômicas foram motivos de exclusão também dentro de correntes feministas. Em uma das passagens, a autora descreve o racismo no movimento sufragista do fim do século XIX. A segregação aparecia não só na obstrução às mulheres negras, mas no tom racista dos documentos que reivindicavam o direito ao voto para as mulheres – brancas.
Angela Davis aponta que “na defesa dos próprios interesses enquanto mulheres brancas de classe média, elas explicitam – frequentemente de modo egoísta e elitista – seu relacionamento fraco e superficial com a campanha pela igualdade negra do pós-guerra.”
No livro, a filósofa estadunidense lembra que, se dependesse das feministas brancas, que queriam impedi-la de falar, não teria havido o famoso e importante discurso da ativista negra Sojourner Truth: “Não sou eu uma mulher?”. Ao fazer essa pergunta quatro vezes durante sua fala em uma convenção de mulheres em 1851, Sojourner confrontou as outras participantes com sua condição.
Ela reivindicou direitos iguais e argumentou que “o fato de sua raça e de sua situação econômica serem diferentes daquelas das demais” não tirava a legitimidade de sua luta por interseccionalidade, nem anulava sua condição de mulher. Ainda assim, as campanhas pela igualdade continuaram desiguais.
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Quem é a outra?
A literatura já contou muitas histórias em que um “outro” é identificado e categorizado para que possa haver antagonismo e para que lógicas de poder possam ser aplicadas.
Em A origem dos outros (traduzido por Raquel Camargo, Companhia das Letras), há seis ensaios da escritora Toni Morrison sobre o tema. Ela descreve o processo de “outremização”, a forma como o discurso colonial cria seus sujeitos. Esse é um ponto-chave para entender como o racismo é assimilado na vida cotidiana, nos pequenos gestos e muitas vezes disfarçado de outros nomes. Criar um outro que seja diferente é imperativo estabelecer relações de poder que servem à branquitude.
Os textos oferecem uma espécie de espelho que nos obriga a pensar sobre quantas vezes tentamos marcar nosso status racializado para não perder uma diferença idealizada e socialmente valorizada, nas palavras de Morrison.
Em Solitária, romance de Eliana Alves Cruz (Companhia das Letras), Eunice e Mabel trabalham na casa de d. Lúcia. Mãe e filha, negras, vivem em um apertado quartinho nos fundos do suntuoso apartamento dos patrões. Mabel é atenta às opressões, nota a mesquinhez da família rica e os gestos praticados para traçar fronteiras: as palavras de d. Lúcia às vezes são dedicadas ao único propósito de marcar uma pretensa superioridade.
A patroa é, nas palavras da jovem, uma eterna criança que nunca limpou a própria privada. A mulher branca é descuidada com o outro, sobretudo quando o outro não tem sua cor de pele. Não é que d. Lúcia desfruta de qualquer privilégio, ainda que acumule muitos. Mabel percebe isso: há um momento em que imagina a vida da família rica e deseja uma realidade serena e sem sacrifícios. Ela conclui que o mais vantajoso não seria ter o lugar de d. Lúcia, mas o lugar de Seu Tiago, o pai que não precisa abrir mão de si para cuidar dos filhos ou de quem quer que seja.
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Outros marcadores
Na obra de Eliana a sobreposição de camadas de opressão fica evidente, mas nem sempre é assim. Há muito “no canto da autorrepresentação do Brasil sombreada pelo efeito da colonialidade do poder e do saber.” As palavras da antropóloga Rita Segato, argentina que pesquisou e lecionou por 35 anos em uma universidade brasileira, estão em “Crítica da decolonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda” (traduzido por Danú Gontijo e Danielli Jatobá, Bazar do Tempo). São textos que apontam para interseccionalidade e deslocam o olhar colonial desse “outro”. Em vez de colocar povos e comunidades como objeto de estudo, a autora propõe uma antropologia que também sirva às demandas desses grupos.
Rita Segato acrescenta outros marcadores para pensarmos sobre as camadas de exclusão e interseccionalidade. Além de tratar especificamente do racismo contra povos indígenas e dos discursos que os transformam em monstros selvagens, a sexualidade também aparece como elemento de opressão. Não só porque as identidades e orientações sexuais dissidentes são inferiorizadas, mas porque qualquer forma de manifestar a sexualidade entre as mulheres é alvo de repressão.
A antropóloga também considera o lugar de origem como indicador, manifestando que as mulheres camponesas ou que vêm de contextos não urbanos tendem a ver suas narrativas e suas subjetividades sequestradas por quem tem mais poder. Aqui no Brasil, diferenças regionais são evidentes, a exemplo de estereótipos como o do Nordestino.
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O lugar da invisibilidade
De volta à história de Solitária, Mabel e Eunice dividem por um tempo parte do trabalho doméstico com Irene. Na pirâmide, ela é a base da base. Além de mulher, negra e pobre, como as duas primeiras, Irene vem do interior, de onde saiu aos 11 anos para trabalhar. A vida da babá menor de idade vale muito pouco para os patrões – talvez não seja exagero dizer que não vale nada.
Um acontecimento importante para o romance precisa urgentemente de culpados. E Irene é a escolhida. Ela é o “outro” perfeito: afinal, às mulheres que somam tantas camadas de exclusão reservamos o lugar da subjugação e da invisibilidade.
A literatura vem para que não possamos escolher entre nos omitir ou nos eximir. Senão, enquanto Irene tem a vida aniquilada, seguiremos a nossa pensando como é duro ser mulher cis branca de classe média. Não que não seja.