Há algumas semanas, ouvindo o podcast Dissidentes, do jornalista Renan Sukevicius, descobri a existência da escritora Cassandra Rios, uma das mais censuradas pela ditadura militar. Popular, ela foi a primeira brasileira a vender um milhão de exemplares, mas teve 36 dos 50 livros que publicou censurados. Suas histórias eram consideradas afrontas à moral e aos bons costumes: narravam o amor entre mulheres.
Desde seu primeiro livro, A Volúpia do Pecado, de quando Cassandra (pseudônimo de Odette, que mudou apenas o primeiro nome) tinha 16 anos, ela escrevia sobre mulheres que se apaixonam, se amam, se desejam e transam – nesse caso, era um amor entre duas adolescentes. Os militares ainda não decidiam o que sairia ou não do prelo, mas nenhuma editora abraçou a obra. Os exemplares só chegaram a leitoras e leitores porque a família Rios tinha lá suas posses e Cassandra pagou a impressão do próprio bolso. A história de estreia ficou disponível por alguns anos, mas foi proibida em 1962, e tirada de circulação.
Corta para 1976: Cassandra, uma autora que já vendia mais que Clarice Lispector e Jorge Amado, teve 14 livros vetados em seis meses, uma perseguição brutal dos censores que a levou à falência. Sem poder viver de livros, começou a escrever para jornais e revistas, e se aventurou em livretos. Precisou se esconder sob outro pseudônimo, Oliver Rivers. Fingindo ser homem, passou incólume pelos fiscais com conteúdo igualmente erótico.
Cassandra Rios é considerada uma pioneira. Levou para a ficção o que a realidade sempre comportou, e abriu caminho para que se falasse – ou ao menos se tentasse falar – de relacionamentos e corpos lésbicos.
Sem pedir licença
Em Lesbiandade, título da coleção Feminismos Plurais, a pesquisadora e ativista negra lésbica Dedê Fatumma fala da colonização dos corpos que padroniza também amores, e até relacionamentos não-amorosos. Ao pensar a própria identidade, a autora evoca intelectuais que ajudam a pensar os percursos de resistência para contemplar sexualidades diversas.
Dedê relembra a paralisia dos corpos silenciados e as dificuldades de “implodir o silêncio”, mas aponta a escrita como estratégia para dissipar a angústia. Lembrando uma carta da americana Gloria Anzaldúa para “as irmãs terceiro-mundistas”, na qual diz que escrever é um ato de sobrevivência: “não apenas para evitar a coagulação da tinta da caneta, mas também para não encruar os sentimentos e deixar morrer o que temos de mais potente. Para vociferar o silêncio da nossa intimidade, por muito tempo sufocado por uma cultura patriarcal, é preciso desaguar-nos em chamas, posto que não somos fogo brando.”
Há uma ideia no livro de que corpos lésbicos, especialmente de mulheres negras, não aprenderam a pedir licença para existir, inclusive porque pedir nem era uma opção. Ela escreve: “continuamos a gozar, por mais que tentem nos apagar da história, renasceremos nos ebós da resistência, oferecidos em cada encruzilhada.”
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É também nas encruzilhadas que outra escritora dá passagem às palavras que manifestam os anseios de corpos dissidentes, recordando a heterogeneidade de suas vivências. A mineira Cidinha da Silva escreve, em seu premiado Um Exu em Nova York, 19 contos que se encontram no escape de clichês e na projeção ao proibido.
Gosto de Mameto, na qual a protagonista vivia numa “solidão de autoridade” em que ninguém se metia, até conhecer a namorada. A paixão que avança desfaz nós e cria outros, numa trama que envolve guias de outro mundo, os orixás. A condição que extrapola o universo terreno afasta a castração dos desejos e dá pulso a um corpo cobiçante.
Cronista e contista referência no Brasil, a ficção de Cidinha é abrigo para quem quer conciliar a existência inevitavelmente política a um espaço seguro para afetos sussurrados.
Vida entre sussurros
A família de Alison Bechdel tinha uma funerária, que ficava no mesmo imóvel em que moravam. A casa de paredes camufladas, estruturas balançadas e tetos de vidro virou livro. Fun Home – uma tragicomédia em familia é popular entre os fãs de quadrinhos e passou anos fora do catálogo. Foi considerado o livro do ano pela revista Time em 2006, e no ano seguinte ganhou o Prêmio Eisner, quase um Oscar dos quadrinhos. Mesmo assim, saiu de circulação – foi reeditado no Brasil em 2018 pela Todavia.
Autobiográfico, Fun Home conta dos vínculos familiares e da lista de traumas, dores, aprendizados e rupturas. Foi no pretenso lar que ela descobriu as primeiras necessidades de falar baixo sobre quem é.
Já era uma casa de silêncios, rodeada pela morte. As descobertas eram feitas em voz baixa para evitar assombros. Nessa busca, depois de um caminho de leituras e sensações, sem nenhum empirismo, Alison Bechdel entendeu que era lésbica e contou à família.
Quatro meses após sair do armário, o suicídio do pai abriu portas para culpas indevidas. Os questionamentos deslocaram a atenção para descobertas sobre ele: o homem que ela conheceu, um metódico parnasiano, distante e exigente, tinha se relacionado com outros homens e com meninos, algo sabido e mantido sob sigilo pela mãe.
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Habilidosa com as palavras e os desenhos, a quadrinista americana retrata um recolhimento melancólico, ora escolhido, ora imposto, do qual brotam tanto força quanto vulnerabilidade. Não me pergunte como, mas ela faz tudo isso de um jeito engraçado.
Em sua obra mais recentemente traduzida no Brasil, O segredo da força sobre-humana, os relacionamentos com outras mulheres (e uma eventual escolha pelo celibato) são assunto lateral. O foco é como o corpo permitiu diferentes experiências ao longo de seis décadas. Obcecada por exercícios físicos desde cedo, percebe que o corpo responde diferente com o passar dos anos. No fim das contas, ele é sua possibilidade de controle, que oferece uma resposta calculável aos estímulos. Estão nas linhas desse corpo cada silêncio que um dia precisou guardar.