“A mulher”, assim mesmo, como algo único e homogêneo, não existe. Somos frutos de uma sociedade moldada pelas noções de tempo, espaço social, contextos culturais, históricos, políticos, religiosos, e até de das noções de classe, raça e gênero. Nesse sentido, as diversas violências contra as mulheres têm mais de uma raiz. Entender a violência contra as mulheres tratando apenas a misoginia, por exemplo, nos traria respostas inconclusivas. Na mesma medida, é incompleta a luta das mulheres sem considerar a defesa dos direitos das mulheres trans.
É curioso navegar pela internet e observar narrativas de um pequeno grupo de mulheres cis apegadas à segunda onda do feminismo (anos 1970), tentando afirmar que a opressão contra as mulheres existe porque elas tem uma vagina, e não pelo gênero imposto no nascimento. Isso me soa contraditório. Além de ser uma ideia antifeminista, que nega os avanços e contribuições dos estudos de gênero, se afasta da interseccionalidade (construção intelectual de feministas negras), e ainda desconsidera a existência de privilégios.
Por isso, repito: não existe mulher universal, que compartilha as mesmas opressões a partir de uma parte dos seus corpos. Não há apenas uma forma de ser e existir enquanto mulher. Se por um lado, é necessário determinar quais direitos as mulheres cis e trans demandam em termos de políticas públicas, por outro, é impossível definir o que é uma mulher sem cristalizar nossas experiências, aprisionar a diversidade e normatizar vivências tão distintas de cada uma. Esse seria um caminho de exclusão e apagamento.
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Uma vagina não faz uma mulher
Uma mulher não é uma vagina e uma vagina não faz uma mulher. Inclusive, nem toda pessoa com vagina é mulher. E isso não contraria a biologia ou a ciência. A biologia não consegue determinar o lugar social que mulheres ocupam, e diversos ramos da ciência atestam a existência de pessoas trans. Homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias com vagina e útero não são mulheres. Também há meninas e crianças, cis e trans, com vulva, e não iremos chamá-las de mulheres. Ainda há o grupo altamente invisibilizado de mulheres intersexo, e as mulheres trans com vagina – sim, elas existem. As cirurgias de redesignação sexual (CRS) em mulheres trans acontecem desde a década de 1920. No Brasil, os registros remetem aos anos 1970, com o Dr. Roberto Farina, No SUS, elas são oferecidas desde 1998.
Não me parece produtivo para os feminismos aceitar a segregação das subjetividades e demandas de travestis e mulheres trans porque “é necessário definir o que é ser uma mulher”. O objetivo disso seria tentar impedir que mulheres trans integrem a luta das mulheres, ou que homens trans assim se reivindiquem, afirmando que eles seriam, na verdade, mulheres. No entanto, fragiliza a luta feminista e expõe muitas pessoas com vagina e/ou útero – algumas que não são mulheres – a situações de violência e vulnerabilidade social.
Aliás, quais seriam as pautas exclusivas das mulheres cis? Elas não seriam, no mínimo, compartilhadas por pessoas intersexo, transmasculinas e não-binárias com vagina?
Legitimar apenas o gênero designado – de forma conservadora e cissexista – e negar a potência das dissidências que rompem com o “cistema” sexo-gênero enfraquece a construção de espaços diversos e inclusivos, e cria segregação entre mulheres cis e trans. Cada vez mais, penso que todas as questões supostamente exclusivas são, na verdade, compartilhadas com outros corpos e identidades de pessoas que não são mulheres.
Também tenho dúvidas se a cisgeneridade seria natural. Se sim, porque uma precisa de uma patrulha tão barulhenta e violenta, que organiza uma aliança entre fundamentalistas religiosos, políticos de extrema-direita, outros grupos antitrans, “críticos de gênero” e feministas transexcludentes – todos contra as existências e direitos trans. Parece haver algum ressentimento desses grupos quando as pessoas trans, ao romper com a cisgeneridade, escancaram a falsa correspondência entre gênero e o que foi nomeado sexo biológico. Afinal, esse último também foi instituído para diferenciar e hierarquizar corpos por suas funções, ignorando identidades, subjetividades e vivências, mostrando que biologizar o gênero é um caminho equivocado.
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Um lugar para as travestis e mulheres trans nos feminismos
Mulheres negras sabem muito bem a consequência do aprisionamento de seus corpos, e a quais violências foram e são submetidas por esse tipo de pensamento. Foram escravizadas e seguem desumanizadas. Enquanto diminuíram os feminicídios contra mulheres cis brancas, aumentaram os cometidos contra mulheres cis negras, deixando nítida a associação entre esta violência e o racismo estrutural, que aumenta sua vulnerabilidade quando se soma ao machismo, à misoginia e à classe social. São mulheres cis negras a maioria das vítimas de estupros e da violência doméstica.
Opressões e especificidades não se anulam ou são antagônicas. Por isso, não deveríamos permitir que assumam um papel determinante dentro dos feminismos, sob o risco de largar a mão daquelas que constroem resistências em seus territórios/campos de atuação. Precisamos seguir na luta contra o patriarcado juntas.
Quando leio teóricas feministas, sobretudo contemporâneas cis negras e transfeministas, fica nítido que definir “o que é uma mulher” é racista e desumanizante em muitos aspectos. Sobretudo porque abre mão do gênero e tenta igualar as experiências de todas as mulheres cis, excluindo e apagando violentamente as vivências materiais de mulheres negras, com deficiência, lésbicas, indígenas, intersexo, trans e travestis. Essa é uma armadilha contra pessoas colocadas historicamente no lugar de “não-mulheres”, exatamente por não habitarem o ideal de ser mulher (universal) proposto por criacionistas e essencialistas de gênero.
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Mais uma camada de opressão
Travestis e mulheres trans, além do racismo, machismo, capacitismo, misoginia e outras violências compartilhadas com outras mulheres, são as únicas que enfrentam a transfobia, direta ou velada, online ou offline. Fora as tentativas de negar suas identidades, como se todas compartilhassem uma única forma de ser trans, ou gozassem dos privilégios de uma suposta socialização masculina – que impõe mais sofrimento, violências e exclusões que as garantias dadas a homens cis.
Acreditar na ideia de que a “socialização masculina” faria parte da vida de travestis e mulheres trans faz parecer que não se pode escapar de um corpo compulsoriamente cisgenerificado. Entretanto, nossa existência mostra que não nos dobramos à ideia de que nossos corpos, suas possibilidades ou genitais definem quem somos. Há outras formas de se relacionar com o corpo e, assim, com o gênero, e há ainda a possibilidade de desconstrução, (re)construção e alargamento dos (cis)gêneros binários.
Tenho me perguntado como, efetivamente, avançar nos direitos trans faz retroceder os direitos das mulheres cis ou as expõe a violências. A verdade é que temos uma luta pautada majoritariamente a partir da violência, de não lugares, do não direito ao nome, à cidadania, ao afeto e à identidade.
Queremos ser acolhidas integralmente a partir de nossas potências, como agentes importantes da luta feminista, e tendo reconhecido o nosso lugar de mulheres. Inclusive para que os espaços feministas se tornem seguros para nossos corpos, se faz urgente naturalizar nossa presença e contribuições.
Mas, por que discutir tudo isso? Porque precisamos que toda a sociedade compreenda que a diversidade compõe a humanidade, e colabora para tornar o convívio social seguro e possível a todas as pessoas que escapam à norma. E que é urgente avançar no entendimento sobre as diferenças entre sexo e gênero, a fim de que possamos em definitivo romper com as narrativas que criam barreiras para a plena existência de pessoas trans.