Viagem talvez seja um dos grandes temas da literatura (e de outras artes). Não são raras as histórias que têm como pano de fundo estradas e caminhos a serem desbravados. Entre a origem e o destino está um percurso que costuma ser interno: as viagens são sobretudo metáforas e metonímias de anseios, desejos e buscas das personagens em movimento.
Na literatura brasileira contemporânea, há um belíssimo exemplar dos romances de viagem em que a estrada é literal. Em Todos nós amávamos caubóis, a escritora gaúcha Carol Bensimon conta a história de duas mulheres jovens que se reencontram depois de algum tempo separadas e resolvem pegar o carro e viajar pelo interior do Rio Grande do Sul.
As amigas são também amantes e tinham planos que ficaram em suspenso quando cada uma tomou um rumo – uma foi para a França, a outra, para o Canadá. O retorno ao país de origem é também uma volta aos combinados entre elas, que ficaram pelo caminho, e talvez tenham sido interrompidos de forma um pouco abrupta.
A viagem das duas é deliciosa de se ler e acredito que isso tenha a ver com uma espécie de curiosidade ou estranhamento que elas carregam, o que faz, vez ou outra, elas parecerem estrangeiras, mesmo quando são locais. É um tipo de relação com o mundo que às vezes achamos que só as crianças conseguem ter, mas quem se desacostuma também consegue.
Desacostume
Acabei de voltar de férias. Dessa vez, atravessei um oceano e fui a países onde a vida é muito diferente da minha. Conversei com pessoas que falam idiomas que não domino, ouvi histórias sobre personagens que desconhecia, experimentei comidas que nunca tinham passado pelo meu prato. Todo um universo de primeiras vezes que as viagens permitem – sejam as que têm a cidade vizinha ou aquelas que têm o outro lado do mundo como destino.
Essa obrigatoriedade do desacostume (um substantivo que deveria existir) que as viagens impõem, em que tudo é novo e diferente, é uma experiência valiosa quando é voluntária e desejada. Acostumar-se parece ter suas vantagens de sobrevivência, mas nubla nossos sentidos para o extraordinário e nos empurra a uma certa resignação. A busca pela oportunidade de enxergar a vida com estranhamento por um período pode ser um dos grandes motivadores das viajantes.
Isabelle Eberhardt, escritora e andarilha suíça, parecia nutrida pela possibilidade de deixar sua zona de conforto. Seus relatos de viagem, do fim do século 19 e início do 20, apontam para um desejo febril de percorrer ruas, avenidas e desertos que a permitissem se confrontar com uma cultura diferente da sua.
Ainda que seu olhar carregasse um exotismo despropositado em parte de seus escritos, sua abertura ao outro parecia genuína e isso a impulsionava a seguir errante, como boa viajante que foi.
Itinerância nata
Alguns dos textos de Isabelle estão reunidos no livro Direito à Vagabundagem, organizado pela jornalista e historiadora Paula Carvalho (com tradução de Mariana Delfini). No ensaio que abre a obra, Paula conta que a itinerância foi parte fundante da formação da autora suíça, que era “filha ilegítima de uma aristocrata russa que mudou para Genebra”, e que sua experiência sempre foi a de ‘estar’ estrangeira.
Enquanto crescia, seu tutor, que a ensinou seis idiomas e que talvez fosse seu pai, a obrigava a vestir roupas masculinas para sair. Mesmo em sua própria cidade, estava impossibilitada de se acostumar. Usar roupas, trejeitos e nomes de homens, no entanto, acabou por ser sua permissão para a liberdade que almejava, a de viajar.
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Enquanto percorria, disfarçada, o norte da África, diluía o que conhecia por gênero e nacionalidade para que pudesse, fosse qual fosse sua identidade, manter suas andanças. Ocupar as ruas e as cidades que a interessavam era seu objetivo supremo e, para isso, se adaptava. Em um dos textos, escreve: “(…) como adoro ver as cidades por onde passo, sonhando, devagar e sozinha, (…) vestida com trajes emprestados, escolhidos de acordo com os lugares ou circunstâncias.”
Quem pode viajar?
Se por um lado Isabelle Eberhardt nos inspira com sua insistente quebra de padrões, por outro, suas viagens são uma constatação de que seu corpo não é o que se espera de um viajante. “Com trajes corretos de mocinha europeia eu jamais teria visto coisa alguma, o mundo teria se fechado para mim, pois a vida exterior parece ter sido feita para o homem, e não para a mulher“, escreve.
Ela não queria ser turista, queria mergulhar no cotidiano e, sendo assim, precisava se apropriar das cidades, vivê-las integralmente. O direito à cidade parece um tema indissociável do direito à viagem. Pensar quem pode viajar é também pensar quem pode ocupar os espaços públicos.
Em Flâneuse, a ensaísta americana Lauren Elkin (tradução de Denise Bottmann), que vive em Paris, cruza sua experiência como andarilha com a de outras mulheres escritoras que também reivindicaram seu espaço como viajantes.
Os textos passam por Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres, sempre com a autora em busca das mulheres que vivem a cidade. Com seu olhar desacostumado, ela repara que ruas levam nomes masculinos, que estátuas têm rostos masculinos e que o desenho urbano tem traços masculinos.
Aquelas que insistem em permanecer na via pública, apesar das hostilidades, são heroínas cotidianas que fincam uma bandeira. E as que, mais do que isso, insistem em viajar e ocupar ruas e calçadas como estrangeiras são resistentes que reivindicam um direito inerente às viagens voluntárias: a liberdade.
Corpos viajantes
Insisto no fato de as viagens que estamos reivindicando serem voluntárias. Nunca é demais lembrar que milhares de travessias de um oceano não foram feitas por desejo. E que, para muitas, viajar foi o desdobramento de sequestros e opressões.
Não só a cidade é um tema intrincado às reflexões sobre viagens. Também os corpos são assunto indesligável quando pensamos nisso – e nem todos eles têm o mesmo acesso. Nesta coluna para AzMina, a jornalista e escritora Flay Alves pergunta: “Ao entrar num aeroporto e olhar para os lados, quem você vê? Mais mulheres brancas ou mais mulheres negras?“
Para que não nos escape mais um olhar, nesta outra coluna em AzMina, a jornalista e doutora em comunicação Agnes Arruda escreve: “Com tantas camadas de desconforto, não é raro que pessoas gordas desistam de viajar. A ideia de que não somos dignas, capazes, merecedoras, não está só na nossa cabeça ou em falas preconceituosas.”
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Passear por cafés pelo mundo, uma imagem que Flay Alves descreve, não é igual para todas. Há um lugar social e simbólico em disputa quando imaginamos quem são as mulheres que têm o privilégio de flanar por cidades gringas (ou mesmo brasileiras).
Uma das liberdades de viajar é poder performar do zero: aproveitar que ninguém nos conhece para abandonar máscaras e fantasias de sociabilidade que vestimos diariamente. Mas isso não nos despe do nosso corpo e da nossa pele. E, aonde quer que cheguemos, de carro ou de avião, sempre haverá olhares prontos para avaliar nossos corpos e, com frequência, vão nos perguntar em silêncio: o que você está fazendo aqui e quem te deixou viajar?
Bagagem mais pesada
Em Escreviver — Cartas de uma Viajante Negra ao Redor do Mundo, Rebecca Aletheia narra trocas e encontros que alimentam nosso desejo de pular de destino em destino, mas também compartilha passagens de machismo e racismo.
Sua primeira experiência internacional foi como enfermeira humanitária, mas ela também queria conhecer o mundo a passeio. Rebecca não sabia de muitas mulheres negras e periféricas que tivessem feito isso, mas foi mesmo assim. Seu livro são relatos das viagens, em cartas escritas para ela mesma.
Seus diários são um lembrete de que a bagagem que as mulheres carregam é sempre mais pesada. Para nós, performar do zero tem limites – não é possível ter o luxo de se despir do repertório de resistência construído ao longo da vida. São várias as ferramentas de proteção que cada uma vai carregar aonde for. No caso da Rebecca, ela escolheu levar na mala as mulheres que vieram antes dela.