A Revista AzMina está publicando toda quarta-feira conteúdos e reportagens investigativas sobre o Lobby Antiaborto no Brasil. Esse divã foi incluído nessa série especial para mostrar os impactos humanos dessa frente ampla no país que desinforma e manipula para retroceder nos direitos reprodutivos. A criminalização e o grande estigma sobre aborto afetam drasticamente a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam.
AzMina recebe esses relatos voluntários de pessoas que interromperam as gestações nos mais variados contextos, e enfrentaram desafios em um país que restringe o acesso à saúde e ao aborto, inclusive nos casos em que a interrupção é prevista em lei (risco de morte materna, anencefalia do feto e gravidez resultante de estupro). Veja a seguir um desses depoimentos inéditos:
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“Eu estava com 13 semanas de gestação quando recebi o diagnóstico de trissomia, provavelmente síndrome de Edwards ou Down, e com uma doença cardíaca grave. Tenho uma filha de 5 anos e um menino, que hoje teria 11 anos, mas morreu com um linfoma pós-transplante de medula óssea. Foram 3 anos de luta absurda com ele, uma gincana da morte diária. Meu filho morreu nos meus braços. Eu prometi para ele que viveria e seria feliz, porque ele veio me trazer alegrias.
Eu não tinha tempo para esperar a confirmação do exame NIPT (que avalia as alterações cromossômicas do feto), até lá acabaria meu prazo para o aborto legal na Argentina. Eu não tinha, nem tenho, condições de ver outro filho morrer. Aqui no Brasil eu teria como fazer (clandestinamente), mas custava R$ 10 mil reais e o médico ainda era um bolsonarista que poderia não ir com a minha cara: sou ativista feminista, influencer, esquerdista.
Eu fiz o exame que deu a merda na terça no Brasil, consegui repetir no dia seguinte com o melhor da cidade. Deu a mesma coisa só que pior. Peguei um ônibus e fui para Buenos Aires, com o contato de uma clínica particular em Rosário. Em 24 horas de mergulho nos submundos da internet, eu descobri tudo que existe. Falei com a mulher da clínica de Rosário, para confirmar o prazo: soube que lá pode fazer o aborto voluntário até 14 semanas, sem precisar explicar nada.
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Ridículo aqui no Brasil só quererem fazer até 22 semanas por risco para vida da mãe ou se não tiver cérebro. Porque tem bebê com cérebro que já se sabe que vai morrer logo depois do nascimento, se chegar a nascer. Eu procurei todas as pessoas que eu conhecia em Buenos Aires, pedi ajuda. Uma falou com um médico e se certificou que eu poderia realizar em um hospital público.
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Entendo bem espanhol porque nasci na fronteira com Uruguai e tenho parte da família lá. Dei o endereço do apartamento do Airbnb, como se morasse lá porque o homem que me atendeu na emergência disse: “não é o [endereço] do Brasil, é onde você está aqui”. Que gente boa são nossos hermanos. Já falei ali em interrupção voluntária de embarazo, e levou 15 minutos pra me atenderem.
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Fui atendida com respeito e sem julgamentos
Na Argentina, você faz o aborto seguro e já sai do hospital com o método contraceptivo que escolher. Fui tratada com carinho e atenção, assim como as que estavam parindo. Mas o processo em si foi um filme de terror. Tive que assinar um papel reconhecendo a possibilidade de morte no procedimento, por conta das duas cesarianas anteriores, que me davam o risco de ruptura uterina.
Eu imaginava que seria anestesiada, mas tinha de ficar acordada. Me deram medicação pra induzir. Fui internada às 9h, duas horas depois dos primeiros 2 comprimidos, começaram a dor e contrações. Meu namorado não podia me acompanhar, só podia mulher, mas ele podia ir no horário de visita. Se eu não falasse espanhol seria pior.
Tomei mais dois comprimidos. Eu já tinha passado por dois trabalhos de parto que terminaram em cesarianas. Eu sabia que em 18 horas eu ia ter 3 dedos de dilatação e já era suficiente. A dor era igual, tudo igual. Quando me deram o 5⁰ e o 6⁰ comprimido, eu já tava de quatro e berrando. Diarreia absurda. Fizeram curetagem pra que eu não tivesse infecção e já colocaram o Implanon, que foi o método contraceptivo que escolhi.
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Privilégios x um Brasil cruel
Os pais do meu companheiro bancaram tudo, inclusive nos deram o dinheiro para ir à clínica particular em Rosário, caso não desse certo em Buenos Aires. A viagem com hospedagem e alimentação saiu menos de R$ 2 mil. Eu lembro de querer passear, ele queria ficar trancado no apartamento. Mas eu assinei o papel de ciência de risco de morte por ruptura uterina. Eu queria andar em Buenos Aires, afinal, acordei no hospital no dia do meu aniversário de 40 anos.
Tive uma depressão terrível depois. Quase desenvolvi transtorno do estresse pós-traumático. Perceber meu privilégio e saber que muitas mulheres fazem sozinhas em casa, quase me enlouqueceu. Absurdo! O Brasil é cruel com as mulheres! Quero que nenhuma brasileira tenha de sofrer sem assistência médica e com medicação sem procedência. Ninguém vai fazer todo mês se legalizarem. Eu só fiz com toda segurança e sem cometer crime porque sou privilegiada e pude ir pra lá. Não tinha informações seguras em lugar nenhum na Internet. Agora eu sei o caminho.”
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