O meu primeiro contato com a AIDS foi numa aula de geografia. No livro que falava sobre endemias tinha um menino preto, magrinho, cheio de mosca em cima. Aquela imagem impactou muito todo mundo. Lembro de pensar: meu Deus, eu nunca vou poder falar. Eu tinha 10 anos e nesse momento eu entendi a preocupação da minha mãe. Ela sempre me dizia que eu não precisava contar. E que se me perguntassem o porquê eu tomava remédio na escola, era para dizer que eu tinha alergia.
A minha infecção é considerada transmissão vertical. É quando o vírus do HIV passa da mãe pro bebê. Isso pode acontecer na gestação, no parto ou na amamentação e dá pra prevenir com medicações. Mas, no meu caso, não houve essa possibilidade porque minha mãe não sabia que tinha o HIV quando engravidou de mim.
A descoberta
A descoberta veio pelo adoecimento do meu pai. Na década de 90 a realidade de pessoas héteros com HIV era mais distanciada porque ainda tinha aquela ideia de que só pessoas LGBTs ou hemofílicas que pegavam. Ele passou por muitas internações até decidirem fazer a testagem. O resultado, na época, demorava de 25 a 30 dias. Hoje os testes são muito mais rápidos, alguns dão a resposta em 30 minutos.
Como o resultado do meu pai foi positivo, decidiram testar a família inteira. Foi quando descobrimos que a minha mãe e eu também tínhamos. Provavelmente o período de infecção foi depois do nascimento da minha irmã mais velha – que tem 3 anos a mais que eu, porque o dela deu negativo. Para os meus pais, o resultado veio tarde. Tanto tempo sem o cuidado, o HIV, que é um vírus, já tinha avançado e causado a AIDS, que é uma doença. Eles faleceram num curto espaço de tempo, depois da descoberta. Fui adotada por uma tia e o companheiro dela. Tive uma base estruturada e muito forte.
A importância do tratamento
A AIDS também é conhecida por Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Ela ataca as células de defesa do nosso corpo e deixa o organismo mais frágil. Como o corpo fica sem defesa, doenças comuns para a maioria das pessoas, como a gripe, podem evoluir para pneumonias. Daí a importância da medicação. Os remédios antirretrovirais impedem que o vírus se replique dentro das células e evitam, assim, que a imunidade caia e que a Aids apareça.
Com a descoberta da sorologia eu já ingressei pequena no hospital que eu faço tratamento até hoje. Lá tinha uma salinha interativa para as crianças. Elas falavam muito de “bichinho”, para explicar o HIV. Quando os remédios adaptados para criança chegaram ao Brasil, eu tinha uns 4 para 5 anos. Elas me disseram que os remédios ajudariam os “soldadinhos” do meu corpo.
Acolhimento nas escolas
Com 14 anos fui ao primeiro encontro de adolescentes e jovens que viviam com HIV. A gente voltou com essa proposta de ter um movimento dentro do Rio de Janeiro para ter um espaço de conversa. Criamos a Rede Estadual de Adolescente e Jovens que vivem com HIV. Depois virou “convive”. O trabalho começou a ganhar reconhecimento e começamos a atuar com saúde e prevenção nas escolas do estado do Rio de Janeiro.
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Esse trabalho cuidadoso nas salas de aula é muito importante. As escolas não se estruturam para gerar um espaço de permanência de crianças e adolescentes com HIV. Hoje a gente tem, por exemplo, o autismo. Todo um movimento para fazer a integração da criança dentro do contexto da escola, mas a questão da vivência com HIV não tem.
Informação, não medo
Em 2016 me formei em psicologia e desde então, já atendi muitas pessoas que acabaram de receber o diagnóstico. Por causa de tudo que a gente geralmente ouve sobre HIV, as pessoas recebem o resultado e já acham que vão morrer em dois meses. Conheço o caso de um menino que descobriu o positivo e pegou um empréstimo para viajar pelo Brasil. Achou que ia passar o final da vida viajando e agora tá vivo, bem, e pagando empréstimo. Chega a ser engraçado, mas é que o medo é plantado nos corpos positivos antes do cuidado e da informação.
Sou alguém que vive há muitos anos com o vírus e isso, por si só, já é uma esperança. Mas isso não é sorte. É informação e acesso ao tratamento que controla o vírus, o que me deixa viver bem. Algo que todo mundo deveria ter. Mas a real é que a sociedade falha muito, principalmente com mulheres – tanto na prevenção, quanto no cuidado. Nem se fala de HIV pra gente. E pra mulheres LGBT então…
Proteção contra o isolamento
Por exemplo, a camisinha feminina disponível nos postos de saúde é de látex, um material super alergênico para nós que temos a imunidade reduzida. O melhor para gente é a de poliuretano, mas é difícil de encontrar. Uma pessoa com quem eu me relacionava já ouviu que a melhor forma dela se prevenir era terminando comigo. Ainda bem que ela tinha a cabeça aberta e não fez isso, mas imagina?
Meu sonho é viver num mundo em que eu não tenha que me proteger da desinformação e do isolamento. E que não fique sobre os ombros individuais o trabalho de informar sobre o HIV, porque o Estado já fará isso com precisão e cuidado.
* Você precisa saber
Em 2022, 39 milhões de pessoas no mundo conviviam com o HIV. Desse número, metade eram mulheres e meninas. E a maioria delas são negras. A desigualdade no acesso à saúde faz com que elas demorem mais pra ter um diagnóstico do que pessoas brancas. Quando descobrem o que é, a doença já está avançada. Você encontra informações sobre diagnóstico, prevenção, sintomas, tratamento e transmissão aqui, no site do Ministério da Saúde.