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23 de maio de 2019

Como é fazer um aborto em clínica no Brasil com dinheiro

E, consequentemente, fazer um aborto com dignidade

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“Cheguei a comprar o tal remédio, conhecido como Cytotec, mas acabei não usando”. Foto: Unsplash

“Eu descobri que estava grávida no final de julho de 2018 e fiz um aborto no final de agosto. Tudo começou quando percebi que minha menstruação, que é muito regulada, estava atrasada cerca de quatro dias. Alguns dias antes, no último jogo do Brasil na copa, dia 07 de julho, um ex-namorado de dois anos ressurgiu das profundezas do inferno dizendo como me amava e queria tentar de novo. Ele é um cara legal, eu gostava pra caramba dele, e depois de muitas cervejas, me deixei levar.

Quando a menstruação atrasou, comentei com alguns amigos como estava com medo de fazer o teste de farmácia. Um deles me disse que quanto mais eu demorasse a fazer, pior seria. Engoli seco e no dia seguinte, antes de ir a uma festa junina de uma amiga, passei na farmácia e comprei o teste. Estava muito ansiosa e julguei que como já tinha comprado o teste, passar a festa inteira com ele sem uso na minha bolsa só ia me deixar mais nervosa.

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E lá fui eu me trancar no banheiro. Abri a bula e li antes de fazer xixi no palito, porque precisava saber antes o que era um positivo e o que era um negativo. Fiz xixi e em menos de cinco segundos o fatídico “+” apareceu. Comecei a me tremer e peguei a bula de novo. Estava muito nervosa e não conseguia processar mais nada. Chamei uma amiga pra dentro do banheiro e, literalmente, joguei o teste e a bula em cima dela e disse “me diz que não tá positivo” e comecei a chorar. Ela fez aquela cara de “estou em choque, mas não vou deixar transparecer” e me disse que, sim, era um positivo.

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Comoção geral dos amigos que estavam ali perto. Eu, ainda me tremendo, mandei mensagem pro meu ex (que a essa altura já sabia do risco iminente): “deu positivo”, eu disse; “Sério?”, ele indagou. Eu disse que sim e ele me perguntou como eu estava e se queria que ele fosse me encontrar.

Quando ele chegou, a gente conversou. Ele disse que o que eu escolhesse, ele estaria do meu lado. Eu perguntei se ele queria e tive que insistir um pouco pra ele confessar que não, não queria, mas também não queria me pressionar. Ele me perguntou se eu queria e eu disse que achava que não. Tinha 27 anos, bolsista, morando com os meus pais e sem perspectiva de estabilidade e independência financeira a curto prazo. Ex-namorado desempregado e também morando com a mãe. Eu não queria criar uma criança assim. O que não quer dizer que eu não quisesse um filho.

E como é pra fazer um aborto? Eu não sei quanto custa, não sei nem por onde começar a procurar. E se eu morrer durante o procedimento? E se eu for presa?

“Não tive coragem de tomar a pílula”

O turbilhão de sentimentos é uma coisa que eu nunca vou saber explicar e que eu nunca desejo pra ninguém. Os dias seguintes foram péssimos. Eu não conseguia comer direito, eu dormia e acordava com “estou grávida” na cabeça. Fui num posto de saúde perto de casa pra fazer o teste de sangue e deu positivo.

Dia e noite chorando e fugindo dos meus pais para que eles não percebessem nada. Foi enlouquecedor. Eu não sabia o que fazer. Não sabia se queria ter ou não, não sabia o que fazer caso decidisse não ter. Meus amigos não sabiam o que fazer e nem como ajudar.

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Até que depois de um ou dois dias eu contei pra minha irmã e ela acabou contando pro meu irmão. Eu encontrei apoio nas pessoas que eu menos achei que encontraria: na minha família. Não porque eu achasse que eles não fossem tentar entender, mas porque em nenhum momento a primeira reação deles foi me julgar ou me dar bronca (que naquele momento não adiantava de nada, só ia piorar o meu estado).

Cheguei à conclusão de que aquele não era o meu momento de ser mãe e, com a ajuda financeira do meu irmão, busquei alternativas. Cheguei a comprar o tal remédio, conhecido como Cytotec, mas acabei não usando. Fiquei com várias paranoias e pensei também que poderia ser uma experiência muito mais traumática (li muitos relatos que só me deixavam mais nervosa). Passei a buscar clínicas. Na cidade em que eu moro, havia duas clínicas muito famosas, mas as duas já não existiam mais. Fiquei sabendo que, se eu achasse, seria açougue. Bateu medo.

“A clínica de curetagem”

Daí, um amigo do meu ex passou o contato de uma clínica em outra cidade. Ao mesmo tempo, um amigo meu me passou o contato dessa mesma clínica e ainda me apresentou a pessoa que tinha feito o mesmo procedimento lá uns meses antes. Ela me assegurou de que o lugar era limpo, o médico era uma pessoa séria e que “tudo era feito com dignidade, como tem que ser”.

Liguei pra clínica, marquei minha consulta e passei seis horas e meia sozinha dentro de um ônibus até chegar lá. Dormi num hotel, no dia seguinte a amiga que ia me acompanhar chegou e fomos juntas. O lugar parecia uma clínica de estética. Antes de ir pra sala de “operação” o médico conversou comigo, me explicou tudo, me deixou tirar dúvidas.

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Disse que as clínicas funcionam com total aval do estado, já que toda semana ele pagava uns policiais para poder manter aquilo ali funcionando. Já na sala onde a curetagem ia acontecer, tinha uma anestesista e uma enfermeira. A anestesista me injetou com três coisas: anticoagulante, remédio pra dor e a anestesia geral. Antes da anestesia, ela disse que ia esperar o médico chegar pra falar comigo. Enquanto o médico não chegava, a enfermeira me disse que teria que amarrar as minhas pernas, porque como eu ia dormir, se ela não amarrasse, elas iam cair. Ela amarrou, o médico chegou e me disse “bons sonhos”, a anestesia entrou no meu sistema e eu apaguei.

Acordei super “grogue” e me levaram pra um quarto com cama e banheiro onde a minha amiga estava me esperando. Tinha deixado ela com o meu celular para manter amigos e familiares a par do que estava acontecendo (se eu estava bem etc.). Ela disse que tudo não durou mais de dez minutos.  O efeito da anestesia passou, me deram um lanche e o médico passou no quarto pra falar comigo uma última vez e me deixar o contato dele caso eu sentisse alguma coisa ou tivesse alguma dúvida. Sangrei só naquele dia e tive mais dor no braço que me espetaram pros remédios do que cólica.

Dez minutos e R$ 5500 em dinheiro pra fazer um aborto de quatro semanas de gestação, no dia 9 de agosto de 2018, mesmo dia em que a legalização do aborto foi negada na Argentina.

“Não há manual para quando se descobre uma gravidez indesejada”

Eu deixei várias narrativas de fora aqui. Não contei, por exemplo, como dois dias depois de descobrir a gravidez procurei uma psicóloga e arrisco dizer que ela salvou a minha vida.  Não contei como muitas das amigas nas quais eu esperava encontrar apoio emocional sequer me perguntaram como eu estava depois de tudo e uma delas inclusive foi um tanto moralista.

Dica: não há manual de como agir quando se descobre uma gravidez indesejada e quando se decide fazer um aborto em um país em que isso não é legalizado. Também não contei como meu ex simplesmente foi um peso morto nessa história toda, porque não me deu nenhum apoio emocional e, como ele estava desempregado, a maior parte da responsabilidade financeira de pagar meu irmão recaiu sobre mim (e recai até hoje, porque ainda não terminei de pagar essa dívida).

Não contei que quando ele me procurou, não tinha nem uma semana que tinha terminado um relacionamento com outra menina e eu acabei lidando com ela também porque ele foi um covarde. Não está aqui nesse texto também o tanto que me senti sozinha durante meses, depois de cortar relações com tais amigas e não encontrar apoio no meu ex. Como chorei, chorei e chorei. No ônibus, no intervalo do trabalho, à noite antes de dormir, todo dia, durante meses. O vazio enorme que eu senti, a culpa que eu senti, a tristeza que eu senti.

Não contei que cheguei a fazer uma ultra e, que ao olhar pro papel depois de decidir pelo aborto, senti algo parecido com luto. Não disse como meu aniversário de 28 anos, um mês e meio depois do aborto, foi o pior que já tive: solitário pra caramba. Não incluí aqui também como depois de uns meses acabei contando pros meus pais o que tinha acontecido e eles foram incrivelmente receptivos e amorosos. E também me restaram ótimos amigos que foram incríveis. Hoje em dia eu quase não choro mais.

É claro que essa foi a minha experiência. Tem pessoas que se sentem completamente diferentes e tá tudo bem, também. Isso não é um manual de como se sentir, como já disse antes. É só um relato, um desabafo. Um relato anônimo porque ainda é um tabu e é difícil falar disso fora da terapia. Um desabafo de uma mulher privilegiada porque pôde pagar por um aborto seguro, digno e humano.

Se você fez um aborto e está confusa e triste, deixo aqui algumas dicas: se possível, procure um(a) psicólogo(a) ou pelo menos alguém com quem se sinta confortável para conversar. Faz muita diferença, juro. Além disso, escrever ajuda. Eu mantive um caderno e toda vez que estava muito triste escrevia. Não se sinta culpada e se afaste de quem fizer você se sentir assim. E procure relatos de pessoas que passaram por isso, caso você queira. Me ajudou muito também. No YouTube tem um documentário brasileiro chamado “Clandestinas”.

Quem senta no Divã dessa semana é uma leitora anônima, porque o aborto ainda é ilegal no Brasil

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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